Estava eu a escrever aquela que iria ser a crónica desta semana, quando recebo uma mensagem do meu grande amigo Tiago: «Notícias tristes… O nosso Coimbra acabou de partir…».
Talvez este nome diga pouco à maioria das pessoas, mas uma coisa é certa: todos aqueles que tiveram a sorte de se cruzar com o ‘nosso’ querido António Coimbra de Matos nunca mais o esquecerão.
Conhecido como o pai da psicanálise moderna em Portugal, psicanalista, professor e psiquiatra, Coimbra de Matos era, para todos os do meio, ‘o Mestre’.
Conheci-o há 20 anos, quando foi meu professor no ISPA. As aulas eram as mais ansiadas e enchiam o auditório. Tinha uma forma de comunicação única, sempre alegre e entusiasta. Através sobretudo de casos reais, fazia-nos aprender, sem esforço e sem nos apercebermos, o mais complexo da psicopatologia. Sempre afável e disponível, era um professor fora de série, como conheci poucos.
Mais tarde foi meu psicanalista. Guardo com saudade a forma carinhosa como no início de cada sessão trocava o lenço de papel no sítio do divã onde deitávamos a cabeça. Era exatamente assim. Simples, atento, dedicado, de movimentos demorados, sempre com um sorriso paternal. No inverno usava camisolas de lã grossas que faziam lembrar as que as mães fazem aos filhos. E ele próprio mantinha em si um sorriso de menino malandro. Na altura tinha 80 anos.
Os olhos iluminavam-se quando ficava contente, era de riso e gargalhada fáceis e contagiantes, gostava de viver, de aproveitar as coisas boas e de ajudar os outros a fazer o mesmo. Via no amor e na relação a base de tudo e era também nesta forma de relação sempre disponível, amiga, atenta que vivia e cuidava dos outros.
Era um pensador, um estudioso, com um olhar crítico e informado sobre tudo, capaz de traduzir em poesia os aspetos mais complexos da mente humana.
Ao mesmo tempo era um rebelde. Na tropa, como contava várias vezes, chegou a ir num carro de combate tomar café e ver o rio. Seguro de si, de pensamento livre, nada preocupado em fazer o que esperavam de si, era fiel a si mesmo. Mas também àqueles de quem gostava.
Partiu demasiado cedo, aos 92 anos. Dizia que queria viver até aos 100 – a mãe tinha chegado aos 101. Mas cada dia foi aproveitado ao máximo, como defendia que devemos fazer, e deixa-nos um legado precioso, fruto de um trabalho contínuo e único. Trabalhou até há um ano. Não sabia viver de outra forma e era aí que encontrava um enorme prazer. Na escrita, no pensamento, na leitura, na escuta atenta, nos seus pacientes e nos seus discípulos, com quem sempre disse aprender muito. Era um irreverente, um inconformado, gostava de descobrir por si e não de papaguear os outros. Não tinha problema em questionar-se a si próprio, em pensar novamente e chegar a outra conclusão. Dizia bem disposto acerca de alguns escritos seus que já estavam ultrapassados.
O homem com a cabeça e o coração no Douro, que aprendeu a movimentar-se nos salões de Lisboa, como se referia a si próprio, não chegou aos 100 anos, mas vai permanecer em cada um de nós, que aprendemos, pensámos e nos conhecemos com ele, para sempre. Que possamos manter aceso o seu espírito corajoso e revolucionário, a sua sabedoria, a sua alegria e bondade e tudo aquilo que nos deixa tanta saudade.