SEVILHA – Não há Sevilha sem Lorca nem Lorca sem Sevilha. «Sevilla es una torre/llena de arqueros finos/Sevilla para herir/Córdoba para morir/Una ciudad que acecha/Largos ritmos/Y los enrosca/Como laberintos/Como tallos de parra/encendidos». Federico pode ter sofrido muito em Sevilha, mas não morreu em Córdoba mesmo que sentisse que era uma cidade para morrer. Morreu em Granada. Não, não é verdade! Não morreu em Granada: foi assassinado em Granada.
Uns dias antes de morrer, os embaixadores do México e da Colômbia, telefonaram-lhe desde Madrid. Estava na altura de fugir, diziam. Corria demasiados riscos, era demasiado visível, avisavam. E ofereceram-lhe o exílio nos seus países. Lorca não quis. Manteve-se junto da família, na sua “finca”, Huerta de san Vicente (onde agora fica a Casa-Museu de Federico García Lorca), uma velha quinta que foi erguida e semeada na segunda metade do Século XIX, então, conhecida por Huerta de Los Mudos. Um dia, Federico García Rodríguez, o pai de Lorca, resolveu comprá-la e, em homenagem à sua mulher, mudou o nome inicial. O filho, Federico, escreveu neste lugar aprazível que vale a pena visitar, algumas das suas obras mais marcantes: Así que Pasen Cinco Años (1931), Bodas de sangre (1932), Yerma (1934) ou Diván del Tamarit (1931-1936). O poeta, sempre entusiasmado pelas confrarias de amigos, adorando prédicas, recebeu aqui gente das mais diferentes personalidades, de Manuel de Falla, Miguel Pizarro e Antonio Gallego Burín, a Manuel Ángeles Ortiz e Eduardo Blanco Amor.
O mês de Julho de 1936 foi quente como os fornos do Inferno. Federico sabia que seria preso, mais dia menos dia. E no entanto não fugiu. No dia 17 rebentou a Sublevação Militar de Melilha, um enclave espanhol no Norte de África, na zona do Rif e nas margens do Mediterrâneo cujo nome parece ter nascido de uma corruptela da palavra Tamlit, termo que os berberes usavam para indicar uma cidade de casas brancas.
No final do dia já os sublevados tinham tomado controlo sobre toda a cidade e provocado a consequente rebelião do que era chamado de Marrocos Espanhol, um protetorado divido entre Espanha e França do reino de Marrocos. Os espanhóis mantinham aí a maior guarnição do seu exército. A IIRepública estava em causa. Viria a cair depois da terrível Guerra Civil de Espanha. Entretanto, por ordem do general Francisco Franco, fora declarado o Estado de Sítio. Três dias mais tarde, foi a vez de a guarnição de Granada se declarar apoiante do movimento. A tomada de poder aos republicanos deu-se de forma pacífica, sem derramamento de sangue. O alcaide de Granada, Manuel Fernández-Montesinos, foi preso. Era cunhado de Federico. Seria fuzilado uma semana depois. Os lobos da revolta rondavam a Huerta de San Vicente. Lorca encolhia os ombros. Tinha escolhido o caminho que quisera percorrer.
Desde que criara, em 1934 a sua própria companhia de teatro itinerante, La Barraca, espalhou por toda a parte manifestos antifascistas e colaborou com a Cruz Vermelha Internacional. Sabia que a direita, e sobretudo os falangistas, tinham por ele um ódio de estimação. E que controlavam as suas reuniões com os grupos de esquerda moderada de Sevilha e que repartia uma grande amizade com o sindicante socialista Fernando de los Ríos. Quando o questionavam sobre as suas preferências políticas, respondia simplesmente que se sentia católico, comunista, anarquista, libertário, tradicionalista e monárquico. Além disso era partidário daqueles que nada tinham e que era movido por uma forte consciência social. Como escreveu o historiador Paul Preston: «Lorca nunca se filiou um qualquer grupo e nunca descriminou ou se distanciou de alguém por questões políticas». De tal ordem que conhecia bem o fundador e líder da Falange Espanhola, José Antonio Primo de Rivera, que se confessava um grande apreciador de poesia.
«¡Sevilla para herir!/Bajo el arco del cielo/Sobre su llano limpio/Dispara la constante/Saeta de su río». Talvez Lorca tenha escrito os seus últimos poemas com a consciência de que iria morrer em breve. Mas também se recusou a fugir da morte. A morte para ele era simplesmente o silêncio das palavras.
A mãe Vicenta…
Federico del Sagrado Corazón de Jesús García Lorca nasceu no dia 5 de Junho de 1898. Não pôde queixar-se de nada porque tinha tudo para ser um menino feliz. A mãe, Vicenta Lorca Romero, era a segunda mulher do seu pai, o fazendeiro Federico García Rodríguez. Vicenta era professora e cedo tratou de inculcar no filho o gosto pela leitura e pela escrita. Quando os pais se mudaram para Granada, de forma a que pudesse prosseguir os seus estudos, o jovem Federico estava fascinado pela música e ignorava a poesia. Quando entrou para a universidade, em 1914, estava disposto a estudar profundamente Filosofia, Letras e Direito. Nessa altura criou a sua primeira tertúlia, que se reunia no Café Alameda e dera a si própria o nome de El Rinconcillo. Em 1919, muitos dos seus companheiros de conversa e de copos tomaram o caminho de Madrid, convictos de que só da capital as suas vozes podiam ser ouvidas em toda a Espanha. Federico foi com eles. E foi esse passo que o conduziu a encontrar-se com gente que o ajudou a estruturar a sua personalidade, como Luis Buñuel, Rafael Alberti e Salvador Dalí. A vida era bela. De tal forma que preparava o seu primeiro livro de poemas, publicado em 1920, a sua primeira peça de teatro, El Malefício de la Mariposa, e compunha uma série de suítes musicais. Todo ele fervilhava. «Estou encadeado como uma rosa de cem pétalas, mas a realidade fecha-me, demasiadas vezes, na sua casa feia e sem saídas. Escreveram-me há pouco a dizer que não tenho lugar na Residência de Estudantes. E agora? É terrível! Vou para onde? Assustam-me os ambientes de Baroja e Galdós, a figura da senhoria, o estatuto de estudante viciado. Mas assim não consigo manter-me em Madrid. Estou amaldiçoado e preciso de partir. Não ouves? Sou eu a afogar-me naquele ambiente provinciano terrível e vazio que enche o meu coração de teias de aranha», escreveu numa carta ao seu grande amigo, o compositor Adolfo Salazar.
O seu regresso a Granada não foi tão cheio de teias de aranha como previra. Porque conheceu o grande compositor Manuel de Falla, que aí se tinha instalado no ano anterior, e com ele se lançou num sem número de projetos musicais, e escreveu o Poema del Cante Jondo, que só viria a ser publicado em 1931, mas que foi um golpe de vento andaluz na cultura ibérica. Cante Jondo significa Canto Profundo, e Manuel de Falla não perdeu tempo em passá-lo a papel de música.
Federico García Lorca entrava definitivamente no grupo dos grandes intelectuais espanhóis: «O grito/A elipse de um grito/Vá de monte/Em monte/Desde as oliveiras/Será um arco-íris negro/Sobre a noite azul/Ai!/Como um arco de viola/O grito o fez vibrar/Longas cortas do vento/Ai!/(A gente das cavernas/mostra seus véus).
O silêncio
Esse era ainda um tempo em que a voz de Lorca se fazia ouvir e trazia uma mensagem de fraternidade e esperança. Na Primavera de 1929, Federico estava em Nova Iorque. Viajara a convite do seu amigo Fernando de Los Rios Urruti, uma das mais lúcidas mentes da política e da sociedade espanhola. Lorca queria aprender inglês, mudar de vida, encontrar saídas para a sua obra. Viajaram no irmão gémeo do Titanic, o Olympic, e foi já nos Estados Unidos da América que Federico escreveu, entusiasmado: «Esta é uma das experiências mais úteis da minha vida. Encontro-me num lugar de fascínio e de morte. Encontro-me no centro de uma civilização sem raízes na qual os ingleses se limitaram a erguer as suas casas e não se preocuparam com a fecundidade do solo». Todos esses sentimentos ficaram registados no livro Poeta en Nueva York, que só foi publicado quatro anos após a sua morte. Para ele, Nova Iorque ficaria para sempre com o nome de Geometria da Angústia. De Nova Iorque viajou até Havana, em Cuba, em busca de novos ritmos para desenvolver a sua veia de compositor, mas em 1930 estava de regresso a Madrid.
Nunca até então fora tão criativo. Num sopro publicou Yerma, Doña Rosita la soltera, La casa de Bernarda Alba e Llanto por Ignacio Sánchez Mejías. Mas a Espanha mudara. Mergulhara num tempo de violência e de intolerância. A situação política era insustentável, a revolta era apenas uma questão de tempo.
Os setores mais reacionários haviam lançado uma torpe campanha de desprestígio do regime democrático e republicano, arrastando na lama todos os seus partidários. Lorca, que alimentava amizade com sujeitos futuristas como Fernando de los Ríos e Alberti, passou a ser, também ele, perseguido por uma certa imprensa. Em 1935, o seu nome vinha sempre acompanhado com o epíteto de inimigo da direita. A revista Gracia y Justicia, decidiu fazer um autêntico assassinato de caráter, insultando Federico na primeira página e traçando-lhe um perfil de blasfemo por via das suas peças de teatro. Além disso, trouxe a público a questão sussurrada mas nunca falada da sua homossexualidade, algo que provocou um verdadeiro terramoto na vida de Lorca.
Federico passou a viver cada vez mais fechado em si mesmo. Numa carta para o amigo Gabriel Celaya, datada de Março de 1936, confessava: «José Manuel Aizpurúa es como José Antonio. Otro buen chico. ¿Sabes que todos los viernes ceno con él? Solemos salir juntos en un taxi con las cortinillas bajadas, porque ni a él le conviene que le vean conmigo ni a mí me conviene que me vean con él». A privacidade começou a ganhar foros de paranoia. Pediu asilo ao seu velho camarada e poeta Luis Rosales, que vivia em Granada, dizendo-lhe que se sentia muito mais seguro debaixo do seu teto do que debaixo do teto dos seus irmãos. Mas o destino de Federico Garcia Lorca estava traçado. Era o tempo da tristeza e da profundidade do silêncio: «Ouve, meu filho, o silêncio/É um silêncio ondulado/Um silêncio/De onde resvalam vales e ecos/Que inclinam seus rostos/Em direção ao sol».
No dia 16 de Agosto, tinha o sol acabado de nascer, quando a Guardia Civil arrancou Federico da cama onde dormia na casa de Luis Rosales. Não havia lugar onde pudesse esconder-se. A detenção foi testemunhada por Juan Luis Trescastro Medina, Luis García-Alix Fernández e Ramón Ruiz Alonso, ex-deputado de la CEDA (Confederación Española de Derechas Autónomas), o esbirro que tinha denunciado Lorca como comunista ao Governador Civil de Granada, José Valdés Guzmán.
Federico García Lorca estava acusado de ser um espião ao serviço da União Soviética e de manter contacto diário com a polícia secreta russa através de rádio. Juntava-se a esta, outra acusação macabra: era homossexual. Foi encerrado na sede do Governo Civil e, no dia seguinte, transportaram-no para uma terriola chamada Víznar, onde passou a noite na companhia de vários outros reclusos. A data do seu assassínio ainda hoje suscita polémica. A versão mais crível é a de que foi fuzilado (de costas como era prática com os homossexuais) às 4h45 da madrugada de 18 de Agosto numa vereda que cruzava a estrada entre Víznar e Alfacar. Nunca o seu cadáver foi recuperado. Permanece numa vala comum na companhia de dezenas de anónimos abatidos como ele. Em 2015 foi possível ter acesso a todo o processo que redundou no assassínio do poeta. A sentença parece não deixar dúvidas sobre a nobreza intelectual do juiz: condenado por ser socialista e maçon, pertencente à Loja de Alhambra com o nome de Homero, além de protagonizar práticas homossexuais e aberrantes.
Federico García Lorca não precisou de epitáfio. Ele mesmo o escreveu com o título E Depois: «Os labirintos/Que cria o tempo/Desvanecem-se/(Só resta/o deserto)/O coração/Fonte do desejo/Desvanece-se/(Só resta/o deserto)/A ilusão da aurora/E os beijos/Desvanecem-se/Só resta/O deserto/Um ondulado/Deserto». Quando são duas da tarde em Sevilha, a cidade que não poderia viver em Lorca, o sol de um deserto qualquer atinge-nos na cabeça como uma pedra. Uma pedra a que Lorca nem sequer teve direito por cima do seu corpo morto… Uma pedra que ficou no lugar do coração.