De uma forma ou de outra, a pandemia da covid-19 afetou todos os setores da economia europeia. À primeira vista, pensar-se-á que os mais afetados serão a restauração e a hotelaria, devido às quebras praticamente totais no número de turistas a viajar o mundo durante o ano de 2020. Mas o indesejado topo desta lista é ocupado pela aviação – por causa da queda do turismo – e pela Cultura, setor que antes da pandemia representava 7,6 milhões de empregos na União Europeia (UE), e que registou quebras de 31% no volume de negócios relativamente ao ano de 2019. Significa isto uma perda de cerca de 199 mil milhões de euros, para um conjunto de atividades que contribuíam com 4,4% do PIB europeu. Os números são de um estudo da Ernst & Young divulgado em janeiro.
Agora, quase seis meses depois, o panorama ainda não é de céu limpo para o setor da Cultura, que continua a sofrer com as medidas restritivas impostas no combate à pandemia. Horários limitados, salas com lotação reduzida e um panorama que não promove o ajuntamento de pessoas são os ingredientes que fazem um cocktail explosivo para os artistas europeus e, em particular, portugueses.
Na altura da publicação deste estudo, a área do setor cultural que mais sofreu foram as artes cénicas, com quebras a pique no volume de negócios a rondar os 90% (cerca de 37 mil milhões de euros), já que se viram praticamente impossibilitadas de trabalhar e gerar receita durante os longos meses de pandemia. A música, por sua vez, viu o volume de negócios reduzido em 76%.
Já o cinema, que em Portugal a cada ano regista um novo recorde negativo de bilheteira, sofreu quebras nas receitas a nível europeu de cerca de 75%. No nosso país, entre janeiro e maio deste ano, por exemplo, as salas receberam menos 85% de espetadores em relação ao mesmo período de 2020 (quando os números já não eram nada famosos), registando-se menos de 400 mil pessoas nas salas de cinema nacionais.
Os danos são, assim, graves, e que o diga João Garcia Miguel, encenador com mais de 20 anos de experiência na área e diretor da companhia de teatro que leva o seu nome.
“A cultura é, neste momento, um setor absolutamente crucial”, começa por explicar ao i, fazendo um resumo, de quem vive e trabalha dentro da indústria, dos estragos que a pandemia fez num setor que já por si é uma estrutura frágil, muitas vezes precária. “O que me parece que pode ser dito hoje, diferente de há seis meses, é que, quando isto tudo começou, pensava-se que ia ser algo rápido. Essa era a grande esperança ou o grande sentimento. Todos tínhamos projetos para fazer, e de alguma maneira, isso foi vivido dentro de alguma perplexidade e algum otimismo, até porque estamos conscientes que há alguma instabilidade nas nossas vidas, e isso poderia ser incluído na nossa própria forma de estar. Mas a situação tem-se vindo a repetir. A repetição no primeiro trimestre deste ano, e agora uma outra vaga… vivemos numa permanente manutenção de estado de alerta e confusão”, lamenta João Garcia Miguel.
Para o encenador, o principal impacto que a pandemia tem causado no setor vai de mãos dadas com a desorganização e a volatilidade das regras impostas, que mudam a um ritmo que obstaculiza o trabalho dos artistas, que muitas vezes procuram colaboradores no estrangeiro, e precisam de começar projetos e trabalhos com meses, até anos de antecedência. “As próprias entidades que nos regulam também demonstram grande desorganização. Há um conjunto de informações constantes que são incompreensíveis e contraditórias”, continua o encenador. E dá o exemplo de um conjunto de artistas alemães que tinha convidado. “De repente, a Alemanha diz que já não podem vir, ontem já foi desmarcado. E afinal já podem vir, é uma confusão.” O encenador apresenta ainda números ilustrativos dos danos causados pela pandemia. A Companhia João Garcia Miguel perdeu “mais de 40% do número de espetáculos”, e sofreu quebras nas receitas entre 50 a 60%.
Teatro por zoom? A maior quebra das artes cénicas, explica João Garcia Miguel, deve-se, principalmente, à impossibilidade de continuar esta atividade através dos registos digitais. “Os espetáculos, aquilo que é a essência do teatro, neste momento não é possível substituir por nenhuma lógica digital, nem teletrabalho. Sinto que este ano fez-nos ligar-nos muito mais aos ecrãs, e primeiro fez-nos sobreviver e não perder o contacto, mas não substitui”, explica o encenador, que foi uma das figuras responsáveis pela criação da FLUX TV, uma plataforma de produção e distribuição de conteúdos digitais, que serviu como forma de colmatar os danos feitos pela pandemia na Companhia João Garcia Miguel.
Há uma palavra constante na análise que o encenador faz dos efeitos da pandemia no setor da cultura: desorientação. “Há uma grande avalanche de ordens, contraordens e desorientações que não estão a ajudar quando as carências já são grandes. Fala-se imenso dos apoios, mas não parecem nunca ser suficientes, e não parecem estar minimamente organizados para permitir à classe ultrapassar este momento”, nota João Garcia Miguel, que dá conta do cansaço e da ansiedade do setor. “Há um conjunto grande de pessoas, com certeza bem intencionadas, a tentar resolver esta situação, mas na verdade as coisas estão todas emperradas, e estamos a tropeçar nos pés e nas mãos. O sentimento geral é que a situação pode ser muitíssimo mais penalizadora e penosa nos meses que aí vêm do que alguma vez se imaginou. Porque o cansaço, o esgotar de recursos que vêm e não vêm está a criar uma nuvem negra de alguma tristeza, apreensão, dificuldade de lidar com a mesma capacidade e resiliência que nos foi pedida, e que toda a classe conseguiu, durante um certo tempo, empreender, porque estava com alguma esperança que as coisas se mantivessem”, lamenta.
O que fazer? Afetado o setor, perdidos apoios, receita e espetadores, resta olhar para a frente e tentar encontrar formas de se manter à tona e de procurar continuar vivos. É este, pelo menos, o objetivo de João Garcia Miguel, que, ao contrário do que aconteceu noutras situações, decidiu normalizar a situação de alguns elementos da sua Companhia de Teatro, com contratos laborais, de forma a proteger estas pessoas do ponto de vista económico e social.
Agora, defende, é preciso união, trabalho, e uma chamada geral aos públicos. “Com os artistas, temos de fazer trabalho junto das áreas políticas, porque são eles quem decide, mas têm que nos ouvir, e temos de estar mais próximos. Dos cidadãos também, tem de haver fóruns de discussão, trabalho de conjunto, e os próprios espetáculos têm de ir procurar temáticas e assuntos que lhes permitam reinventar-se, como se estivéssemos a começar hoje outra vez”.