por Maria de Fátima Bonifácio
Historiadora
Portugal nasceu da violência. Na Batalha de São Mamede, em 1143, D. Afonso Henriques venceu a mãe, por interposta pessoa de Fernão Peres de Trava, um fidalgo galego com ambições. Depois – e isto é o ponto decisivo – Afonso Henriques tratou de alargar a geografia do território conquistado. O único caminho possível era uma progressão para o Sul, ocupado por muçulmanos. Passo a passo, chegou a Lisboa e tomou-a aos mouros com o auxílio de uma cruzada que no caminho para a Terra Santa aportara em Lisboa. O cerco durou alguns meses. Os cruzados tiveram, como prémio, a licença régia para saquearem a cidade. D. Sancho I, que viria a falecer em 1211, deu continuidade à Reconquista, finalmente terminada, em 1249, por D. Afonso III. Tivemos portanto um século de governo militar.
Ao contrário de outros reinos europeus – como a Espanha ou a França, por exemplo – Portugal não resultou de uma união negociada e voluntária entre unidades políticas ou reinos avulsos. Não: foi o produto de uma Reconquista, o que significa que o rei não teve que negociar a agregação dos territórios sucessivamente conquistados. Esta circunstância moldou o nascimento e afirmação de Portugal e deixou marcas no nosso ‘ADN’ que legaram rasto até hoje. Com efeito, por um lado, uma reconquista militar exigia um poder central que coordenasse a logística, definisse os alvos e comandasse as expedições. Por outro, uma reconquista militar exigia que toda a periferia aceitasse sem hesitações a supremacia do centro. Não havia espaço para diatribes senhoriais ou demasiadas exigências concelhias.
Com efeito, os nossos reis guerreiros da dinastia afonsina combinaram a organização administrativa do reino com o prosseguimento da Reconquista. Nas zonas concelhias, grosso modo a Sul do Douro, vigorava o sistema dos forais, documentos onde se exaravam as condições mútuas judiciais, administrativas e fiscais entre a corte e os concelhos. O municipalismo nasceu muito cedo e foi um aliado importante do rei na tentativa, largamente conseguida, de se impor como alguém acima de tudo e de todos. Nas zonas de senhorialismo, grosso modo a Norte do rio Douro, os reis também não abdicaram das suas prerrogativas e acabariam a controlar esses senhores, candidatos falhados a grandes senhores feudais, mas que nunca alcançaram tal estatuto não só porque esbarrava contra os poderes régios como porque a divisão do património familiar entre os descendentes enfraquecia continuamente as sucessivas gerações.
A Reconquista foi uma longa sucessão de campanhas militares programadas. Terminou, como se disse, em 1249, com a tomada de Silves por D. Afonso III. Entretanto, e ao mesmo tempo que iam decorrendo as acções militares, impunha-se organizar a vida local de populações que nada tinham em comum – nem etnia, nem língua, nem cultura, nem costumes – a não ser o cristianismo, herdado dos romanos. Era um laço demasiado frouxo para conferir um mínimo de coerência e coesão a um reino que se afigurava como um amontoado de pequenas localidades cuja existência carecia de um enquadramento legal. Os forais são o elemento mais saliente da modalidade de cooperação entre o Centro e a periferia, e que se pode considerar um arranjo contratual entre o rei e os concelhos. Estes podiam eleger as suas autoridades municipais e até o seu regime fiscal interno, por exemplo, mas o rei, apostado na montagem de uma organização judicial unificada de Norte a Sul, ergueu-se como juiz supremo em todo o território português, sem remoques, desafios ou contestações. Note-se que os legistas foram auxiliares preciosos: conheciam bem o direito romano e, na medida do possível ou adequado, aplicaram-no à organização político-administrativa do reino, para reforço das vantagens do poder central.
A Reconquista constituiu um vasto empreendimento bélico que ninguém, salvo o rei, estava à altura ou tinha os meios de toda a ordem necessários para levar a cabo. Este simples facto bastaria para fazer do Estado, incarnado no rei, uma Autoridade praticamente ilimitada. Sobre isso, as características do nosso território favoreceram a emergência de um centro político todo-poderoso. Primeiro, cada concelho era um concelho, não se verificando um especial relacionamento inter-concelhio que promovesse o intercâmbio entre culturas e etnias muito diversas. O que ligava os concelhos era o facto de que todos os habitantes eram súbditos do rei de Portugal, muito antes de serem portugueses. Depois, ainda menos existiam identidades regionais. «O que cria a identidade portuguesa é de facto o Estado.» (J. Mattoso) O Estado, combinado com a pré-história portuguesa, impediu a emergência de poderes regionais capazes de concorrer com o rei, poderes intermédios entre a periferia e o centro: «No meio não havia nada.» (B. Vasconcelos)
No que toca à criação de uma monarquia dotada de um Estado ‘moderno’, destacou-se D. Afonso III (1248-1279). Legou este um Estado capaz de intervir em todos os pontos do reino, dotado dos atributos que caracterizam um Estado ‘moderno’ e altamente centralizado: a proibição de os senhores levantarem homens por iniciativa própria, isto é, o rei arrogou-se o monopólio da força legítima (um exército unificado e hierarquizado na dependência do monarca), o privilégio exclusivo da coroa de cunhar, valorizar ou desvalorizar a moeda, um sistema judicial em que a coroa funcionava como tribunal de apelação em última instância, um sistema fiscal abrangendo todo o país. Esta precocidade sair-nos-ia muito cara. Creio que as suas sequelas ainda hoje se fazem sentir, como se estivessem inscritas no nosso ADN. Sem eliminarem a pobreza generalizada, tais sequelas fariam de Portugal uma nação de pedintes e subsidiados, em que o Estado era a única instância em que tudo ou nada se resolvia ou decidia. Tais sequelas são largamente responsáveis, no século XIX português, pela multiplicação de dependentes e grupos clientelares e propiciaram, no mundo dos negócios, uma nefasta promiscuidade entre o público e o privado. O povo gemia com a sua má sorte, mas, como uma mula teimosa, perseverava na sua pobre safra para não morrer de fome.
Foi assim durante séculos. Não se formaram, na Idade Média, concelhos de grande dimensão nem, por conseguinte, se geraram coligações urbanas capazes de afrontar a vontade do rei e dos seus escribas, meirinhos, corregedores e outros ainda, uma burocracia que entretanto infestou o país todo, concelhio ou senhorial. De resto, a nascente burguesia portuguesa padecia de debilidades inatas, enfrentando duas concorrências simultâneas: a dos mercadores estrangeiros, que se avantajaram com uma enorme parcela do comércio português, sobretudo no sector das exportações; e a concorrência da coroa, que supervisionava o comércio de especiarias e metais preciosos e dele colhia benefícios. A esta dupla concorrência vem juntar-se, nos séculos XV e XVI, a dos ‘fidalgos-mercadores’ (V. M. Godinho), privilegiados pela coroa. Na região em que prevalecia o senhorialismo, a Norte do rio Douro, também não surgiram, pelas razões indicadas, senhorios de grande extensão e envergadura. Estes senhores locais, proibidos de intervir nos territórios concelhios, vegetavam na sua inércia, longe do mundo urbano e da economia comercial.
Assim se explica que, apesar de «estar tão ligado às cidades», «o peso do Estado na configuração da economia atrai a formação de vários grupos clientelares constituídos não só por funcionários mas também por cortesãos e fidalgos, cuja fidelidade é paga e mantida por um complexo regime de mercês e privilégios.» (J. Mattoso)
Note-se que um outro factor da omnipotência do Estado consiste na macrocefalia de Lisboa. Nos séculos XV e XVI, a monarquia, parte muito interessada no comércio das especiarias (sobretudo), há muito que estava permanentemente sediada em Lisboa. Esta conjugação entre a sede do poder político e a sede de uma economia mercantil e urbana está na origem da extraordinária macrocefalia da capital, que de resto há muito se vinha desenhando.
«Assim, tudo o que realmente tinha verdadeira importância económica ou social dependia, em última análise, da coroa.» (J. Mattoso)
No século XV fomos verdadeiramente grandes. Começaram então as façanhas dos Descobrimentos. Foi isto no tempo da ‘Ínclita Geração”, os filhos de D. João I e de D. Filipa de Lencastre. Portugal ‘abraçou o mar’ e fez desse abraço o seu seguro de vida. E assim foi durante algum tempo. Mas antes do final do século XVII a Índia estava acabada; fomos enxotados de lá primeiro pela concorrência árabe no Índico, depois pelos holandeses e finalmente pelos ingleses. As praças do Norte de África também foram sendo abandonadas ao longo do século XVI, e em 1578 um rei-menino, D. Sebastião, fiado na protecção divina, morre ingloriamente na batalha de Alcácer-Quibir (Marrocos), abrindo o caminho à sucessão filipina. Batemos no fundo e inventámos a perdurável lenda do sebastianismo. A gesta dos Descobrimentos trouxera à monarquia portuguesa prestígio internacional e um desafogo financeiro transitório. Mas o país, o escasso povo urbano e a miríade de camponeses, continuaram afogados na pobreza de sempre. A coroa e respectivas clientelas absorveram toda a riqueza que os Descobrimentos propiciaram. O fulgor esgotou-se em menos de um século. As sequelas do império falhado prosseguiram até aos nossos dias: entre elas avulta o estatismo reinante no Portugal contemporâneo. Sob este aspecto, existe na história portuguesa uma linha de continuidade que vai da Reconquista até aos nossos dias.
No século XVIII e durante o reinado de D. João V fomos salvos pelo ouro do Brasil, que o rei esbanjou sem nenhum proveito real e palpável para o país. Esgotados o ouro e as pedras preciosas, Portugal abeira-se da contemporaneidade totalmente desprovido dos meios necessários para competir num mundo internacionalizado e onde já se tinha difundido a máquina a vapor. Por cá, continuava o antigo remanso: sem indústria digna desse nome, com o comércio externo nas mãos dos ingleses, com uma agricultura improdutiva e um campesinato imobilizado na ignorância e na miséria. É verdade que não tínhamos nem carvão nem ferro, mas, sobretudo, não tínhamos capitais para investir na modernização e, não menos importante, faltava-nos uma classe média adaptada ou capaz de se adaptar às necessidades da industrialização. As invasões francesas (1807-14) começaram por dar com o Estado em pantanas. A monarquia, incluindo a maior parte da nobreza de corte, embarcou para o Brasil sob protecção naval da Inglaterra, tendo D. João VI deixado o país nas mãos de uma frágil Regência. Eça de Queiroz comentaria mais tarde: «Até aí o Estado dera o pão ao país, e na perda do Estado, vai-se o pão de cada dia.» (Cit. por F. Mónica)
Sob todos os aspectos, Portugal estava impreparado para as exigências da modernização, que nos esperavam ao virar da esquina de 1834, quando a guerra civil entre liberais e miguelistas termina com a vitória inequívoca dos primeiros. Começou uma nova era – a Monarquia Constitucional – mas persistiram os antiquíssimos hábitos. O governo eleito em 1834 encontrou os cofres vazios e só os empréstimos contratados em Inglaterra permitiram estabelecer um aparelho de Estado a partir do qual este criou, literalmente, um esboço de classe média, embora pobre mas ainda assim separada da massa miserável pelo fosso da ignorância e da extrema penúria. O liberalismo criou, por necessidade, uma classe média ancorada no Estado, financiada pelo Estado, e que se foi lentamente expandido na exacta medida em que se processava a expansão do Estado.
A falta de ‘pão’ explica uma grande parte do clima belicoso e até violento que a Monarquia Constitucional teve de enfrentar de 1834 a 1851. Em 1851, graças a um pronunciamento militar de Saldanha, à habilidade de Rodrigo da Fonseca e à competência de Fontes Pereira de Melo, o país, que fora vivendo de empréstimo em empréstimo, fez uma bancarrota parcial. Seguiram-se alguns anos de acalmia e razoável consenso. Não foram muitos: em 1856 renasce o radicalismo e voltamos à ‘vida velha’ de 1834-51, embora com a decisiva diferença de que os militares não mais saíram da caserna (excepto quando da ‘Saldanhada’ de Maio de 1870). Gradualmente, instalou-se uma crise política que se intensificava a cada crise financeira. Fontes governou durante um excepcional período de acalmia e de muito relativo equilíbrio financeiro (1871-77, 1878-79), largamente graças às remessas dos emigrantes no Brasil. Tal como hoje vem da UE, a transitória ‘salvação’ fontista veio de fora. A partir de 1880, a crise tornou-se permanente, até que em 1890 sofremos o ‘vergonhoso’ Ultimato inglês, e em 1892 fizemos simplesmente uma bancarrota total. A nossa dívida per capita era a segunda maior do mundo (onde havia estatísticas, claro). Nos jornais, reagimos como vítimas inocentes da prepotência estrangeira. Em tertúlias, em opúsculos, na imprensa e na correspondência privada, um grupo de intelectuais e políticos-intelectuais interrogava-se sobre a viabilidade de Portugal como país independente. Oliveira Martins perguntou com franqueza: «Há ou não há recursos bastantes, intelectuais, morais, sobretudo económicos, para subsistir como povo autónomo dentro das estreitas fronteiras portuguesas?».
Nos finais da Monarquia, a vida política portuguesa tornou-se um vergonhoso lamaçal. Basílio Teles, um intelectual do republicanismo – note-se –, não teve dúvidas: «Mil vezes um tirano, duro e frio, contanto que inteligente e patriota, prendendo, deportando, perseguindo, mas impondo à estima do mundo um povo […], do que um bando de politicantes histriões, atascados em torpeza e estupidez.»
A República não foi propriamente um regime, foi um estado de coisas engenhado para manter o poder do sr. Afonso Costa. Depois de um século liberal desgraçado; depois de uma República em permanente revolução ou turbulência, Fernando Pessoa explica por que motivo o país estava a pedir um Salazar: «Depois dos Afonsos Costas, dos Cunha Leais, de toda a eloquência parlamentar sem ontem nem amanhã na inteligência nem na vontade, a sua [de Salazar] simplicidade dura e fria pareceu qualquer coisa de bronze e de fundamental.»
Texto redigido para o Movimento Europa Livre