Quando, no passado domingo, em Wembley, cerca de 60 mil adeptos ingleses resolveram, em uníssono e ordinariamente lançar assobios e invetivas sobre o hino italiano que começara a tocar, confesso que uma profunda desilusão tomou conta da minha escrita. Até aí, e excetuando aquelas habituais bestas de 124 patas que costumam seguir a equipa dos Três Leões, comportando-se como animais que são, Wembley tinha sido o palco de uma festa bonita de cânticos guerreiros mas dedicados aos onze ingleses que haveriam de entrar no relvado para, finalmente, perante a crença generalizada de uma nação, pôr fim à maldição que vem desde aquele ano mágico de 1966 em que a Inglaterra ganhou o_Campeonato do Mundo em sua casa. Até dia 10 de julho deste ano, nunca mais conseguira atingir a final de uma grande competição, vivendo ainda a frustração de 1996 quando, trinta anos depois, recebendo a fase final do Campeonato da Europa, fora eliminada pela Alemanha nas meias-finais de Londres. Estive lá e vi. E ouvi aquela que seria a canção desse torneio, transformada depois no hino da própria seleção inglesa: «Three lions on a shirt/Jules Rimet steel gleamin’/Thirty years of hurt/Never stop me dreaming».
As vaias da última noite chuvosa de Londres socaram-me o estômago como um murro de Joe Frazier. O Canto Degli Italiani é um hino relativamente jovem (foi escrito em 1847 por Goffredo Mameli, em Génova, com música composta por Michele Novaro) e data dos tempos atribulados das sucessivas revoltas que acabariam por conduzir à união dos vários reinos em que a península estava dividida. Expressa a grande vontade de unificação bem como a recusa feroz das tentativas de invasões estrangeiras de certas partes daquela terra que viria a ser a Itália, sobretudo vindas dos franceses e dos austríacos. É mais do que um hino: é um brado à resistência e à independência. «Fratelli d’Italia/L’Italia s’è desta/Dell’elmo di Scipio/S’è cinta la testa/Do’vé la Vittoria?/Le porga la chioma/Ché scavia di_Roma/Iddio la credo!» (algo que pode traduzir como: «Irmãos de Itália/A Itália acordou/Com o elmo de Cipião/Em redor da cabeça/Estendam-lhe as folhas/Que escrava de Roma/Deus a criou»).
E com que força as gargantas dos italianos fustigados pela chuva inclemente dessa noite de Wembley, sublinhavam a frase «Do’vè la Vittoria!». Não tardaria a chegar, mesmo que pela sempre embirrenta decisão das grandes penalidades.
A Itália acordou!
Depois de terem vivido o recente pesadelo de não se conseguirem apurar para a fase final do Campeonato do Mundo de 2018, na Rússia, a federação italiana resolveu entregar nas mãos de um esteta do futebol, Roberto Mancini, a responsabilidade de recuperar um prestígio que se passeava pela ruas da amargura. Mancini inventou uma Itália nova. Não apenas nova por ter chamado a vestir a camisola da squadra azzurra alguns jovens semi-desconhecidos, mas também porque deu oportunidade a jogadores fora do circulo vicioso das grandes equipas. Depois, recusou o velho princípio tão italiano que é à defesa que se ganham jogos. A Itália deste Europeu foi um conjunto criativo e ofensivo e, principalmente, uma equipa divertida, de estilo diversificado, que não deixou ninguém indiferente. E ninguém levantou a voz contra a justiça da sua conquista.
A partir de agora, a Itália é, de longe, a campeã do tempo. Começou a ganhar grandes competições em 1934 e continua a ganhá-las em 2021. Algo que demonstra uma capacidade de rejuvenescimento absolutamente notável. Veja-se, por curiosidade, as datas dos triunfos internacionais da squadra azzurra: vitórias nos Mundiais de 1934, 1938, 1982 e 2006; vitórias nos Europeus de 1968 e 2020 (2021); presença nas finais dos Mundiais de 1970 e 1994; finalista do Euro 2012. Pode juntar-se a isto – logo numa altura em que a FIFA resolveu tomar a atitude absurda e bacoca de considerar as vitórias olímpicas do Uruguai de 1924 e 1928 como títulos mundiais, não explicando porque só esses dois torneios olímpicos foram equiparados a Campeonatos do Mundo e entrando na fantasmagórica estrada de descobrir um campeão do mundo antes da existência de mundiais – a vitória no torneio olímpico de futebol de 1936, em Berlim.
Ou seja, tirando as décadas de 1940 e 1950, durante as quais, envolta na ferocidade da II_Grande Guerra e na destruição tremenda do país, a Itália tem tido a capacidade de surgir com uma fiabilidade notável, no topo do futebol do mundo. Trarão alguns à colação que os fundamentos para o crescimento e popularidade do futebol em Itália nasceu no terreno pantanoso e sórdido do fascismo de Mussolini, que cedo entendeu que o jogo seria seu aliado desde que o manobrasse com destreza. A organização da fase final do Campeonato do Mundo de 1934 foi bem um exemplo do poder de uma squadra azzurra que, bastas vezes, jogava de negro, numa espécie de submissão aos Camicie Nere, os camisas negras dessa sinistra organização paramilitar que ganhou o nome oficial de Milícia Voluntária Para a Segurança Nacional. 1938 (com 1936 pelo meio) serviu para afirmar o poderio único dos italianos no futebol universal, tornando-se um conjunto com a aura de invencível. A guerra iria pôr um fim brusco não apenas à superioridade italiana mas também às competições internacionais. Os campos de futebol tornaram-se campos de batalha e muitos dos melhores jogadores da Europa trocaram a bola pela espingarda e foram morrer para as trincheiras.
Desde 2006 sem uma grande conquista internacional, a vitória da Itália neste Europeu serviu bem de prova que a squadra azzurra está sempre pronta a renascer e a surpreender-nos. «Noi siamo da secoli/Calpesti, derisi/Perché non siam popolo/Perché siamo divisi», cantam os fratelli («Somo há séculos/Pisados, escarnecidos/Porque não somo um povo/Porque estamos divididos») Mas, depois, eleva-se o chamado colectivo: «Siam pronti alla morte/L’Italia chiamó!». Um hino assim não se assobia. Ouve-se numa concha de silêncio para que a memória não o esqueça.