Depois de uma luta longa contra a fibrose quística, a jovem que levou a que os doentes com esta patologia fossem ouvidos perdeu a vida. «É com grande tristeza que hoje, dia 11 de julho pouco depois das 14h, a nossa querida Constança nos deixou. A Constança viveu constantemente a sua vida com um admirável positivismo e entrega. Nunca tomou nada por garantido, apreciando cada momento da sua vida como se fosse o seu último», anunciou a família de Constança Braddell. de 24 anos, na conta oficial da mesma, no Instagram. «Obrigada a todos os que se juntaram recentemente para ajudá-la a celebrar a Vida – é graças a todos e cada um de vós que ela viveu os mais extraordinários últimos meses da sua vida feliz e esperançosa», escreveram, agradecendo «aos amigos e família que enriqueceram em tanto a vida da Constança» e «à incrível equipa médica que tomou conta da Constança ao longo da sua vida».
«A Constança mostrou ao mundo o significado de ‘Acreditar’ e tornou-se numa inspiração para todos nós. Ela será e permanecerá sempre uma fonte de inspiração. Aquela com o sorriso mais contagioso, que radiava energia e uma força de espírito inigualável. Constança Braddell tu és, e serás para sempre, a nossa maior guerreira. Nós amamos-te», lê-se na publicação. Recorde-se que, no passado dia 3 de julho, por meio da mesma rede social, a família veiculou que a jovem estava internada há uma semana e meia nos cuidados intensivos em «estado muito grave», sofrendo então «uma sucessão de complicações do ponto de vista clínico» apresentando «um prognóstico muito incerto e extremamente reservado».
É de lembrar que no passado dia 5 de março, Constança fez um apelo no Instagram. «Não quero morrer, quero viver! Nunca pensei chegar ao ponto de ter de escrever sobre a iminência da minha morte. Sobre esta doença que me assombra há 24 anos: fibrose quística», escreveu, à época. «Esta doença, cujo nome deriva do aspeto quístico e fibroso do pâncreas, é crónica, hereditária e causada por alterações num determinado gene (o gene CFTR) que se transmite de pais para filhos», explicava com a sabedoria de quem travava uma luta constante, esclarecendo que a patologia surge por mau funcionamento das glândulas exócrinas do organismo – as de secreção externa, sendo que é a nível dos pulmões e do pâncreas que se manifesta com mais frequência, «interferindo com a respiração e a digestão dos alimentos».
«Acho que fui crescendo e percebendo que tinha de ter uma rotina de terapias, de consultas no hospital. Não consigo precisar quando é que foi, acabou por ser gradual», disse a rapariga cuja patologia foi diagnosticada aos apenas três meses de idade. «Sabia que tinha de controlar os sintomas, fazer um check-up, ver como é que tudo estava» e, aos oito anos, foi internada pela primeira vez, durante duas semanas, devido a uma infeção respiratória. Tentando levar uma vida o mais parecida com a dos restantes jovens, nunca revelou aos amigos que sofria de fibrose quística. «Não contava porque não queria que me olhassem de forma diferente, tivessem pena ou me colocassem um rótulo. Sempre escondi e quando perguntavam algo, dizia que tinha asma porque tenho tosse crónica», confessou em entrevista, à LUZ, no passado mês de maio.
No entanto, depois de uma viagem ao Brasil, no ano passado, «coincidentemente» o estado de saúde da licenciada em Marketing e Publicidade agravou-se. «Foram, sem dúvida, os piores meses da minha vida», admitiu, referindo-se aos meses compreendidos entre o início do ano passado e o presente, até porque, em março, surgiu a covid-19, que descrevia como «bomba-relógio», na medida em que teve «muito medo» de ficar infetada. «Tive de estar confinada sem poder ver os meus amigos, tinha repetidas infeções respiratórias que me levaram a perder a capacidade pulmonar e, consequentemente, a precisar de um transplante pulmonar», recordou Constança, que não conseguia dormir uma única noite sem acordar três ou quatro vezes «com ataques de tosse, dores no peito e, muitas vezes, febre», tendo sido internada em janeiro. «Foi a partir daí que necessitei de oxigénio 24 horas por dia e de um ventilador para dormir».
A crença no Kaftrio
Contudo, a esperança não esmorecia devido a uma descoberta feita há um ano: o Kaftrio. «Fui pesquisar imenso sobre o medicamento. Ainda nem sequer estava aprovado pela Agência Europeia do Medicamento, só foi em agosto. Como percebi que não estaria tão cedo cá, não fiquei a pensar tanto nele. Foi mais quando percebi que tinha sido aprovado na Europa», declarou. No mesmo dia em que o apelo foi feito, o Infarmed veiculou que existia a possibilidade de acesso ao medicamento, da iniciativa do hospital, através de Autorização de Utilização Especial (AUE), ao abrigo de um Programa de Acesso Precoce (PAP). «Descobri que havia estes programas, mas para muito poucos doentes. Tentei contactar o Infarmed para que fosse mais abrangente, mas ignoraram. Disse-lhes que estava a morrer e, ainda assim, escolheram não fazer nada», sublinhou a sobrevivente.
«Foi apenas depois do meu apelo tornar-se viral que decidiram agir. Acho lamentável. Uma pessoa não deve ter de suplicar pela vida para ter acesso a algo que é do seu direito», condenou Constança. No dia seguinte, «completamente abananada no hospital», não soube que os amigos e familiares haviam criado uma angariação de fundos no GoFundMe, conseguindo mais de 33 mil euros em poucas horas. «Quando fiz o meu apelo, não estava a pedir nada, mas sim a expor a minha situação. Pensei que, se tudo aquilo que eu tentava não resultava, teria de tomar outra posição», elucidou. «Enviei emails ao Infarmed, ao Ministério da Saúde, etc. Diziam que tinha de fazer ‘um simples pedido’, com zero empatia», sendo que, na ótica da jovem, «passavam a bola para o outro lado», isto é, a culpa era atribuída ao hospital pelo Infarmed e vice-versa.
14 pedidos de Autorização de Utilização Especial
O medicamento foi aprovado a 9 de março. «Fiquei bastante comovida com a onda de solidariedade que surgiu. Não esperava que chegasse a tanta gente. Lembro-me de uma das minhas melhores amigas dizer-me que tinha ouvido falar de mim, na rádio, a caminho da faculdade e eu perguntava se isto estava a acontecer ou estava a sonhar. Não acompanhei nada, parecia surreal», desabafou, narrando que, para sua surpresa, teve acesso ao medicamento em menos de uma semana. «Não esperava que fosse tão rápido. Estava aos pulos na primeira toma», garantiu à LUZ, sendo que, algumas horas depois, sentiu «mais energia, mais fome, parecia que o medicamento fazia efeito até ao nível dos pulmões».
Graças à persistência de Constança, o Infarmed aprovou 14 pedidos de Autorização de Utilização Especial do medicamento Kaftrio. Entre os mesmos, estavam seis do Centro Hospitalar Universitário Lisboa Norte (CHULN), nomeadamente o seu.
Poucos dias depois, o diretor clínico do CHULN afirmava que o tratamento inovador poderia chegar em breve a mais cinco doentes daquele centro hospitalar, do qual faz parte o Hospital de Santa Maria e o Hospital Pulido Valente. Estes doentes passaram, assim, a fazer parte do Programa de Acesso Precoce a este medicamento, que lhes será administrado sem quaisquer custos.
Em comunicado, o CHULN afirmou que ia fazer uma «avaliação rigorosa dos perfis clínicos de outros 25 doentes acompanhados no seu Centro de Referência para a Fibrose Quística» para analisar as indicações para o tratamento com o fármaco mais indicado para cada situação.
«O grande objetivo do CHULN é proporcionar aos seus utentes o acesso ao tratamento clinicamente mais adequado, como sempre aconteceu. No espaço de apenas dois anos, entre 2019 e 2020, o CHULN duplicou o número de doentes tratados com medicamentos inovadores e o investimento nestes tratamentos», lia-se na nota.
Volvidos dois meses, Constança lembrou que lia as mensagens e os comentários que recebia, todavia, em maio dizia ter mais saúde e tempo para interagir com os seguidores. «Dizem que os inspiro ou ajudo de algum modo a ver a vida de outra forma. É gratificante saber que também ajudei os outros», ressalvou, não deixando de referir que recebeu, também, mensagens maldosas.
«Perguntavam aquilo que fiz ao dinheiro, se tinha ido comprar joias. Felizmente, há poucas pessoas assim e, por isso, nem me dou ao trabalho de responder», assumiu, adiantando que «há uns dias, uma pessoa disse que estava seminua no Instagram e que não tinha fibrose quística». Em declarações à LUZ, explicou que o dinheiro angariado estava «guardado para o caso de ser preciso comprar o medicamento» mas, se tivesse a garantia de que o mesmo lhe seria assegurado até ao fim da vida, apostaria na investigação científica. «Acho que é aquilo que faz mais sentido, explorar a fibrose quística», explicitou a jovem cujo maior sonho, a longo prazo, era deixar de necessitar de oxigénio.
Constança não conseguiu concretizar os seus desejos porque, no passado domingo, após um internamento de três semanas nos cuidados intensivos, não sobreviveu à doença nem ao pneumotórax – acontece quando se dá a entrada de ar na pleura, a membrana que cobre os pulmões – de que foi vítima.
Ainda assim, ambicionava dedicar-se ao Instagram «para ajudar e inspirar pessoas que possam estar a passar por situações difíceis ou semelhantes» e ir à África do Sul. «Aprendi a dar valor à vida, não pelos melhores motivos, mas vejo-a de outra maneira», finalizou.
Constança era uma dos 400 doentes que sofrem de fibrose quística em Portugal. De acordo com os últimos dados divulgados pela Associação Nacional de Fibrose Quística, estima-se que nasçam, por ano, entre 30 e 40 crianças com esta doença. A nível mundial existem aproximadamente 7 milhões de pessoas portadoras da anomalia genética da fibrose quística e cerca de 75 mil com a doença.
Nas últimas décadas, a esperança média de vida destes doentes passou dos 10 – em 1960 – para os 40 anos – em 2010 -, essencialmente devido ao diagnóstico precoce da doença que, desde 2013, passou a integrar os exames realizados durante o Teste do Pézinho. Em 2020, já rondava os 44 anos para aqueles que nasceram entre os anos de 2014 e 2018.