À partida, nenhum de nós diria que a pornografia poderia ser, de alguma forma, ligada à arte. Mas a verdade é que a distinção entre a arte erótica e a pornografia tem sido, ao longo dos anos, amplamente discutida, mas raramente consensual. E, por mais que os académicos tentem «lutar» para chegar até uma teoria clara que distinga os dois termos, à medida que a sociedade ocidental caminha para uma mentalidade coletiva cada vez mais liberal e os argumentos dos críticos acompanhem a transição para a chamada «arte experimental», a distribuição de pornografia e produtos da indústria do sexo torna-se cada vez mais comum. Sendo, por isso, difícil pôr fim a esta «fusão».
A iniciativa
«Algumas pessoas acham que os museus são enfadonhos. E se vos dissermos que eles abrigam uma coleção de pornografia inestimável? Bem-vindo ao Classic Nudes, o guia interativo do Pornhub para algumas das cenas mais sexy da história nos museus mais famosos do mundo. Junte-se a nós numa tour pelas instituições mais respeitadas da arte ocidental, onde o guiamos por todas as pinturas puritanas e vamos diretamente a coisas boas: representações do corpo nu em toda a sua glória artística. Porque a pornografia pode não ser considerada arte, mas alguma arte pode definitivamente ser considerada pornografia», lê-se na página de apresentação da Classic Nudes.
Foi em meados deste mês que o site pornográfico Pornhub se «associou» à campanha de regresso aos museus e, para tal, criou um «guia» apelidado de Classic Nudes, em português Nus Clássicos, onde. Nesse «espaço», além de propor visitas guiadas à arte erótica em seis dos mais importantes museus do mundo – a Galeria dos Uffizi, em Florença; o Louvre e o Museu de Orsay, em Paris; o Museu do Prado, em Madrid; a National Gallery, em Londres; e o Metropolitan, em Nova Iorque – o site parte de obras consideradas «importantes» e «muito famosas», para os seus filmes. Todos os quadros da «galeria sexual» são acompanhados por legendas que vão além da descrição a que todos estamos acostumados quando visitamos um museu, com o acrescento de provocações «picantes» e de cariz sexual.
Obras de arte envolvidas
O Nascimento de Vénus, de Botticelli; e a Venus de Urbino, de Ticiano, são duas das pinturas citadas pelo site pornográfico: a primeira e principal serve de apresentação do guia Classic Nudes e é narrada pela «conhecida» atriz porno húngaro-italiana Ilona Staller (aka Cicciolina) que recria e comenta a obra que Botticelli realizou no final do século XV. Cicciolina, antiga deputada em Itália e ex-mulher do escultor Jeff Koons, com quase 70 anos de idade, foi a «escolhida» para assumir o lugar de Vénus na reconstituição da pintura e foi necessário esconder o envelhecimento do seu corpo. Essa é a razão que explica o facto da atriz se encontrar vestida com um «fato» justo ao seu corpo e do seu tom de pele, para dar a impressão que esta se encontra nua. Ao mesmo tempo que pousa, Cicciolina dá as boas vindas aos visitantes afirmando: «A pornografia pode não ser considerada arte, mas, definitivamente, algumas obras de arte podem ser consideradas pornografia».
A outra guia é a atriz e realizadora americana de cinema porno, Asa Akira, que, com algum humor, apresenta e interpreta num audiotour algumas das centenas de obras «visitadas» pelo Pornohub. Uma das curiosidades expostas pela atriz americana sobre O Nascimento de Vénus, por exemplo, esclarece que, antes de Botticelli, «praticamente ninguém pintava um nu feminino na arte ocidental desde o tempo do Império Romano».
Outro quadro de abertura é o do clássico Vénus de Urbino, de Ticiano. O óleo sobre tela em que uma mulher posa nua com a mão a cobrir as suas partes íntimas tem a modelo central «trocada» pela estrela porno My Sweet Apple, que dá vida à protagonista mostrando, segundo a «imaginação» dos criadores do vídeo, o que «talvez estivesse a acontecer no momento em que o quadro renascentista estava a ser pintado». Outra exibição «obscena» apresenta «um novo olhar» do imortal Male Nude, em português Nu Masculino, de Edgar Vegas do Met (1856), que parte da pose do homem nu deitado para uma cena de sexo explícito com uma mulher.
‘O tiro pela culatra’
A verdade é que os sites pornográficos tem vindo a «assistir» a um aumento no seu número de visitantes e, a pandemia da covid-19, veio, não só manter, como aumentar esse «fenómeno»: de acordo com os dados divulgados pela maior plataforma digital de conteúdos para adultos a nível mundial (Pornhub), em junho de 2020 a procura de vídeos pornográficos pelos portugueses passou de um aumento de 8% a 1 de março para 13,8% a 24 de maio, comparativamente com o período anterior à covid-19. Segundo os dados, Portugal segue assim a tendência global, com o consumo de pornografia a aumentar 10,9% em todo o mundo. Ao mesmo tempo, as indústrias evoluem, e talvez tenha sido com os olhos postos nessa evolução, que o site decidiu «oferecer» à indústria pornográfica outros caminhos, neste caso, criando uma iniciativa com uma «missão artística e pedagógica».
Não há muitas dúvidas que esta iniciativa, tanto trará novos públicos ao site, como dará a conhecer obras-primas a um público totalmente novo, «casando» dois mundos que geralmente não se envolvem… Mas as instituições citadas não têm assim tanta certeza de querer ver as suas «preciosas obras-primas» exploradas dessa maneira e a primeira a protestar foi a Galeria dos Uffizi de Florença, da qual o Pornhub cita uma dúzia de obras, sem qualquer pedido ou aviso prévio, e muito menos consentimento. O Uffizi de Florença emitiu então uma advertência legal ao Pornhub sobre os direitos de sua arte: «Ninguém concedeu autorização para a operação ou uso da arte», disse um porta-voz da Uffizi ao site americano The Daily Beast. «Na Itália, o código do património cultural prevê que para usar imagens de um museu é necessário ter a permissão, que regulamenta os métodos e fixa a taxa relativa a ser paga. Tudo isso obviamente se o museu conceder a autorização que, por exemplo, dificilmente teria sido emitida neste caso», explicou, acrescentando que se trata «de um dos muitos casos de uso comercial das nossas imagens, sem autorização, por isso, atuamos sempre da mesma maneira, há uma lei específica e queremos que ela seja respeitada».
Citado pela agência italiana AdnKronos, o diretor da Galeria dos Uffizi, Eike Schmidt, reforçou que o Pornhub «não pediu, nem obteve autorização» para usar as imagens das suas obras-primas; e contactou já a MindGeek Holding, a empresa luxemburguesa proprietária do site, a exigir a sua retirada.
Da mesma forma, o Louvre, onde a obra-prima Gabrielle d’Estrees e One of Her Sisters, de um artista desconhecido, está pendurada (e que é descrito no site pornográfico como um ‘titty-twister medieval’), moveu uma ação judicial para o uso não autorizado da obra-prima. Um porta-voz do museu parisiense adiantou ao The Daily Beast que o «Pornhub ouviu falar dos nossos advogados e esperamos que as obras sejam removidas imediatamente».
Não são conhecidas as reações dos outros museus, que a agência noticiosa AdnKronos diz não terem também sido consultados pelo Pornhub. Mas é provável que acabem por seguir o exemplo dos seus «colegas».
Mais uma vez atentos ao passar dos tempos, os responsáveis pelo Pornhub decidiram também «criticar» o eurocentrismo presente nas coleções dos grandes museus ocidentais, em que as obras expostas são maioritariamente de artistas brancos. Criaram, por isso, uma sétima secção, intitulada Outra Perspetiva, que oferece a vista de obras provenientes de todas as partes do mundo.