Para o A. Graça de Abreu e o Álvaro Caneira
Comecemos pelo que é preciso saber para se compreender. O que é hoje o regime chinês? Na economia, capitalismo de mercado. Na política, o modelo Imperial, que faz funcionar aquele com surpreendente eficácia. Modelo imperial dos Han e dos Tang (os tempos modernos na China, fluorescentes e criadores, de grande abertura ao exterior) e não o do primeiro imperador, Huángdi (em pinyin, 皇帝) (221-206 a. C.), modelo de Mao, de que o totalitarismo maoísta importado do Ocidente foi a versão chinesa.
Durante o império, às forças armadas cumpria a defesa das fronteiras, existiam apenasr, para isso. O poder do Estado era assegurado pela administração burocrática hierárquica do mandarinato. Nesse modelo, o comando civil e o militar estavam separados, unidos ambos na pessoa do Imperador. Quando o revoltoso Liu Bang (206 a.C.) chefiou a revolta que pôs termo à dinastia Qin e fundou a dinastia Han, um letrado disse-lhe: “Conquistaste o poder a cavalo, agora tens de te apear para governares a China”.
Quem ignora a História e a civilização não se terá apercebido do significado (tudo tem significado na China) do fato usado pelo Presidente Xi Jiping na cerimónia comemorativa do 100º. aniversário o P”C”C. Um fato contrastante com o de todos os membros do Governo e dignitários do regime presentes. E poucos o terão ligado à encenação rigorosa e ao tema central e destinatários principais do discurso: os militares, a defesa da nação, glosando a metáfora (e realidade) da muralha que um invasor encontrará nas forças armadas e no povo.
O traje que vestiu, ao contrário do que a generalidade dos observadores terá pensado, não é um traje maoísta, mas sim – simbolizando os dois estatutos que acima referi, XI Jiping é PR e Presidente da Comissão Militar Central – o Zhongshan introduzido por… Sun Yat-sen logo após a fundação da República da China (1912), como a forma de traje nacional de cerimónia usado por intelectuais e líderes políticos, que Mao e os comunistas adotariam. Traje que substituiu a túnica clássica até então usada pelas elites. E como acontece com tudo na China, logo o povo atribuiu, então, ludicamente, significado simbólico a aspectos da sua concepção, que Xi hoje exibe. Diz-se, assim (as minhas Amigas chinesas davam-me conta dessa curiosidade também nos casacos que vestiam), que os quatro bolsos representam as Quatro Virtudes, Integridade, justiça, honestidade e vergonha (a honra no compromisso). E os cinco botões – note-se – os ramos do governo civil da China: Executivo, Legislativo, Judiciário, Mérito e Controlo (Avaliação), Educação, diríamos hoje, desde sempre sagrada na China, referência às escolas e exames milenares mandarínicos exigentíssimos, abertos a todas as classes sociais, cruciais no pioneirismo milenar e na excelência e avanço da administração e sustentação do poder imperial**.
E tudo nessa comemoração foi encenado para uso interno, ainda que o discurso pudesse também conter uma mensagem para o exterior. Os líderes chineses pensam antes de mais na audiência interna, pois não se julgue que o bloco e a linha do poder, apesar do apoio de mais de 80% da população, não tem oposição interna, correntes várias no seio do Partido (também maoístas) e mesmo, se não na cúpula de Direcção, na hierarquia***. O Partido, que controla ditatorialmente (ia a dizer… imperialmente) o poder político, teme o povo e está atento às suas expectativas, exigências e avaliação na sociedade.
Julgo poder dizer agora “branco é, a galinha o pôe”. Não podendo envergar uma farda por não ser militar, Xi Jinping apresenta-se sempre (que me lembre) nos desfiles militares ou na ANP com o Zhongshan de Sun Yat-sen. E neste caso o Imperador não foi nú.
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* o Imperador Amarelo (daí o povo amarelo, do Rio Amarelo, benção e, pelas cheias, flagelo da China).
** Com eles (o confucionismo) substituiu na China uma nobreza de sangue por uma nobreza de mérito.
*** China, 3.0, Gradiva/Fundação Calouste Gulbenkian, 2013.
NB – Por minha responsabilidade, o texto hoje publicado na edição deste sábado do Nascer do Sol saiu com várias deficiências. Desde logo no título. Peço desculpa aos leitores e ao meu jornal.