Os nossos filhos não são cobaias

Toda a gente fala dos benefícios da comunicação clara e transparente. Mas quem a deve praticar, fecha-se em copas, do alto da sua sobranceria escudada pelo manto invisível da ciência. Poupavam-se tantas angústias se houvesse um pouco mais de consciência da importância (e do dever) de prestar contas.

por Sofia Aureliano

1. Os nossos filhos não são cobaias.

Em 2015, os alunos portugueses alcançaram os melhores resultados de sempre nos testes internacionais de Matemática e puseram Portugal no topo, à frente da Finlândia, que é sempre referido como o país-modelo.

Mudou o governo, mexeu-se na equipa vencedora. Erro Crasso. Porque quando funciona é porque está a ser bem feito. Regra básica que qualquer aluno do 1º ano consegue assimilar.

Mas não. Toca a baralhar e dar de novo e a mexer com um setor cujos bons resultados advêm muito da estabilidade e da exigência.

Extinguiram-se os exames nacionais do 4º e do 6ª ano, o que faz com que se fique às cegas sobre a aferição de conhecimentos e a avaliação da qualidade do ensino. Depois, em 2017, instauraram-se as aprendizagens essenciais e a flexibilidade curricular. Na prática, isto quer dizer que fica ao critério de cada professor dar ou não 25% do programa e, sem exames nacionais, deixou de haver forma de comparar o grau de preparação dos alunos sobre as mesmas matérias e que parte do programa lhes foi ou não dada.

Como resultado direto das mudanças efetuadas, em 2019, Portugal cai a pique nos testes internacionais e, em resposta, em vez de recuarmos para uma fórmula que já se sabia vencedora, anuncia-se, no final de  2020, a substituição de todo o programa – aquele que transformou Portugal num caso de sucesso em tempos não tão distantes.

E aparece um novo programa de matemática que, dizem os entendidos, representa um retrocesso de três décadas, que subscreve definitivamente a linha do facilitismo, em detrimento da do rigor.  

É incrível como em dias se consegue estragar o que demorou anos a construir. Esta renovação programática é uma bomba que vai rebentar no edifício sólido que deve ser a Matemática.

Não fosse da educação dos nossos filhos de que falamos e este seria apenas mais um item na longa lista de erros a apontar ao governo. Mas é o futuro das novas gerações que está em causa e fazer dos nossos filhos cobaias de experimentalismos ideológicos é um ato criminoso.

Brandão Rodrigues deverá estar de saída, mas quer sair sem deixar marca. E vai deixar uma bem perversa.

2. Porque não explicam?

Toda a gente fala dos benefícios da comunicação clara e transparente. Mas quem a deve praticar, fecha-se em copas, do alto da sua sobranceria escudada pelo manto invisível da ciência. Poupavam-se tantas angústias se houvesse um pouco mais de consciência da importância (e do dever) de prestar contas.

O coordenador da Task Force, que foi na sexta-feira passada ao Parlamento dar a boa notícia de que, em setembro, já praticamente toda a  população terá cobertura vacinal contra a Covid 19 com pelo menos uma dose, confirmou que, se a DGS decidisse dar duas doses de vacina a recuperados da doença, não haveria qualquer problema logístico. Estimou que seriam cerca de 450 mil doses adicionais e Portugal tem doses suficientes para, em tempo útil, dar boa resposta a essa tomada de decisão.

O que me deixa ainda mais desassossegada (no sentido mais perturbador da palavra) sobre qual a razão que leva a Direção-Geral de Saúde a insistir em achar que uma dose chega, contra a recomendação do Centro Europeu de Controlo e Prevenção de Doenças (ECDC) e em sentido contrário da maioria dos Estados-Membros. É casmurrice ou embirração? Não acreditam que sejam necessárias duas doses? Acham que fará mal a infetados e funcionará como uma sobredosagem?

Seja qual for o critério de sustentação da norma, saiam por detrás do biombo dos graus científicos, deem a cara de uma vez por todas e venham explicar-nos, por favor. Os cidadãos têm direito de saber se estão ou não a ser protegidos tanto quanto podem e devem ser.

3. Evasão.

Os pontos acima inquietaram-me, mas deixei a catarse feita na semana passada. Sábado começou um pequeno período de férias em que – não vos vou enganar – não tive inquietações. Pelo contrário. Consegui vislumbrar até coisas menos más que o Covid nos trouxe: mais consciência de que Portugal é mais do que sol e praia, mais valorização do tempo em família, com aqueles com quem não pude estar tanto tempo nos últimos longos meses, melhor apreço pelas pequenas coisas, que antes tinham por adquiridas.

Rumei a norte.

Temos paisagens paradisíacas dignas de qualquer top 10 "pura vida" internacional.

Encantei-me com a simpatia das gentes do Minho, os cenários idílicos que pintam as margens do Lima e do Vez, o Gerês escondido, em percursos de dez horas sem rede.

Durante estes dias de descanso da mente e exercício do corpo só houve espaço para desgaste físico. E até esse foi revigorante. Apercebi-me da falta que “ausentar-me” da espuma dos dias, das tricas políticas, dos bate bocas parlamentares me estava a fazer. O paradoxo de ver de longe para conseguir observar melhor.

Não vivi Covid, não senti Covid, não fui refém do Covid. Não contei mortos, nem vacinas, nem soube nada sobre os internados, as trocas e baldrocas das decisões do governo: abre ali, fecha aqui, às 13h, às 15h30 ou às 19h. Como se o vírus tivesse relógio.

Eu não tive e fui feliz. E ainda vou ser por mais uns dias.

Fica o meu conselho de cura rápida para inquietações: evadam-se.

Estamos todos a precisar muito disto. De tempo para fazermos as pazes com o mundo.

Como disse Marco Aurélio, “O tempo não só cura, mas também reconcilia”.