O cenário era tão requintado quanto minimalista. Uma pequena camada de fumo pairava sobre o chão branco como neve do estádio Mercedes Benz, em Atlanta, enquanto dezenas de milhares de fãs ocupavam os lugares. Uma imagem quase surreal, tendo em conta o contexto pandémico que o mundo enfrenta.
No centro de tudo isto, Kanye West, de casaco e calças encarnadas, apesar dos 32ºC que se registavam na capital da Geórgia, e com uma inusitada meia transparente na cabeça. Tratava-se de uma listening party de Donda, o mais recente disco do controverso rapper.
West convocou todos os seus “seguidores” a ouvirem, com antecedência e ao vivo, o álbum, cujo título é dedicado à sua mãe, Donda West – e fez questão de que, mesmo morta, a progenitora não faltasse à ocasião, tendo insistido que a cobertura do estádio estivesse aberta para que ela pudesse ver o concerto.
A performance foi algo bizarra. Kanye, que chegou duas horas atrasado ao evento, não dirigiu uma única palavra às mais de 40 mil pessoas que se encontravam na audiência. O Guardian notou que este décimo disco tocava “num volume desconfortável”, enquanto o USA Today descreveu que o artista “caminhava em círculos e, às vezes, trotava alguns passos”. Já a Forbes destacou que, de tempos a tempos, West se colocava de joelhos como se estivesse a rezar ou completamente imóvel.
Estágio no estádio De forma a completar Donda, o rapper de 44 anos escolheu permanecer no estádio em Atlanta – atualmente está a viver num balneário onde decorre a produção do disco. Depois de diversos fãs terem partilhado fotos e vídeos do rapper naquele local, com a mesma roupa que utilizou durante a listening party, inclusive a meia na cabeça, a ver um jogo da equipa de futebol Atlanta United, Kanye garantiu que apenas irá abandonar a arena quando o trabalho estiver finalizado. O músico ter-se-á sentido tão inspirado pela multidão que assistiu à sua performance que decidiu permanecer no estádio da sua cidade natal para terminar o disco.
Donda é o sucessor de Jesus is King, disco de Gospel lançado em 2019, durante uma das fases mais tumultuosas da vida de West, entre o apoio ao ex-Presidente Donald Trump e uma falhada campanha presidencial por parte do rapper (que poderá repetir-se em 2024), problemas de saúde mental (West admitiu que sofria de bipolaridade) e o divórcio de Kim Kardashian.
Aliás, muitos esperavam que o seu novo disco fosse apenas um longo insulto à sua ex-mulher, mas acabou por revelar-se um trabalho sensível, de purga de demónios pessoais e autoanálise.
Ao longo do álbum vamos ouvindo a voz da mãe do rapper, uma das maiores inspirações da sua vida. “As duas lições que ele tentou passar aos seus filhos”, ouve-se na faixa ‘Never Abandon Your Family’, onde Donda está a falar sobre o seu pai, avô de Kanye: “A primeira é que não devemos nunca abandonar a nossa família. A segunda é que, apesar de tudo, devemos amar incondicionalmente”.
Donda West, uma professora de inglês na Universidade Clark Atlanta, educou o seu filho sozinho, depois de se ter divorciado de Ray West, antigo membro do grupo político Panteras Negras e um dos primeiros fotojornalistas negros do The Atlanta Journal-Constitution.
Autêntico pilar na vida do filho, a professora sempre o incentivou a prosseguir o seu sonho e apoiou a sua carreira desde a primeira hora. Aos 13 anos, quando Kanye criou a música ‘Green Eggs and Ham’, Donda pagou uma hora num estúdio para que o filho a pudesse gravar. A par da sua profissão, adotou o cargo de manager da carreira do filho.
“Mãe tu eras a vida da festa”, canta o rapper na faixa ‘Jesus Lord’. “Eu juro, tu trazias a vida para a festa. Mas quando perdeste a tua vida, isso retirou a vida da festa”.
Muitos ligam a morte de Donda, em 2007, depois de uma doença de coração como consequência de operações plásticas, com a fase em que Kanye se tornou mais problemático.
Dois anos depois desta tragédia pessoal, o músico invadiu o palco dos MTV Video Music Awards e interrompeu o discurso de agradecimento da Taylor Swift para dizer que o vídeo da Beyoncé, da música ‘Single Ladies’ (Put a Ring on It), deveria ter ganho o prémio.
Após este incidente, Kanye esteve presente no talk-show do Jay Leno onde, entre lágrimas, pediu desculpa e afirmou que ainda não tinha tido tempo para processar a morte da sua mãe. “Obviamente, eu lido com dor, tal como muitas celebridades, mas eles nunca tiram tempo para lidar com o sofrimento, e eu também não”, confessou. “Tem sido música atrás de música, tour atrás de tour. Tenho vergonha que a minha dor tenha causado dor a outra pessoa”.
Apesar de muitos ouvintes terem ficado desiludidos com Kanye pelas suas declarações controversas e por apoiar um Presidente de extrema-direita, os que ainda permaneceram para a viagem irão ouvir em Donda um homem a tentar reconciliar-se com o seu complicado passado.
“Eu disse-lhe para ‘parar com todos aqueles chapéus vermelhos, nós vamos para casa’”, canta Jay-Z na faixa ‘Jail’, simbolizando não só o regresso da colaboração entre os velhos amigos, mas também que West poderá estar prestes a afastar-se das ideias de Trump.
Mas mesmo com parte do álbum conhecida, alguns fãs temem que se trate de mais uma promessa que fique por cumprir por parte do rapper.
Os que ficaram pelo caminho Não seria a primeira vez que Kanye West prometia um projeto para, mais tarde, faltar à promessa. Em 2009, depois de expressar a sua admiração pela estrela pop Lady Gaga, ambos os músicos se tinham comprometido em realizar uma digressão em conjunto, designada como Fame Kills Tour. No entanto, o plano acabaria por sair furado, com os concertos a serem cancelados depois da polémica interrupção de Kanye a Taylor Swift no palco da MTV.
Outro projeto que ficou por cumprir foi um videojogo para iPhone inspirado na vida de Donda West, com o nome Only One. Em 2016, a produtora do jogo referiu que Kanye tinha “outras prioridades”.
O músico também tentou vingar na televisão, tendo criado, em 2007, Alligator Boots, uma série de sketches de comédia que contava com a participação de Jordan Peele, realizador do filme de terror Nós. Mais uma vez, a ideia não foi levada para a frente.
Também na música, o rapper prometeu uma grande quantidade de álbuns que acabariam por nunca ver a luz do dia, nomeadamente Good Ass Job, que devia ter sido o quarto da sua contabilidade pessoal; So Help Me God, a suposta sequela de Yeezus; TurboGrafx 16, alegado álbum de trap; Love Everyone, disco que o rapper terá mostrado a jornalistas da TMZ; ou Yandhi, que chegou a ter uma data oficial de lançamento, 29 de setembro de 2018, mas que nunca chegou aos ouvidos do público, só aos de jornalistas da revista Fader.
Donda deveria ter sido lançado nos mercados a 23 de julho, um dia depois da bizarra listening party no estádio Mercedes Benz. Com o adiamento da data para 6 de agosto, e o rapper a sugerir que deviam ser feitas alterações nalgumas músicas, existe o receio de que Donda não chegue a ser publicado.
Os fãs que continuam fieis ao controverso rapper e à sua música aguardam ansiosamente pela próxima sexta-feira para perceber se Kanye West desta vez mantém a sua palavra ou não.