Fez ontem um mês que deixei o Centro de Saúde da Ajuda, devido à minha aposentação. E não há dia nenhum que não receba mensagens ou telefonemas de pessoas que lá acompanhei durante muitos anos e que ainda hoje me procuram noutra perspetiva, mas que me é sempre grato reviver.
As últimas semanas foram duras e difíceis. Tive de lutar para que a emoção, própria do momento, não tomasse conta de mim e me fizesse confundir o trabalho com a saudade.
Muitos utentes pediram o meu contacto e quiseram saber os locais onde me poderiam encontrar, em caso de necessidade. No serviço, sucederam-se os pedidos (que nem por serem habituais nestas ocasiões são menos comoventes) para que não os esquecesse, para que os fosse visitar de vez em quando, para que estivesse presente nas alturas festivas.
Porém, aquele que mais me marcou veio de uma colega desta nova geração, a Dra. Marta Fournier. O último, por sinal. Com alguma emoção, esta colega, ao despedir-se de mim, disse-me olhos nos olhos: «Nunca desista de nós. É um pedido que lhe faço». Ouvi em silêncio estas palavras que mexeram muito comigo — e ainda hoje medito no seu significado.
Na altura, não fui capaz de dar a resposta que aquele pedido merecia. Mas hoje, passado um mês, quero testemunhar publicamente o que ele representou para mim.
Esta colega sempre mereceu o meu respeito e a minha admiração, por razões várias. Está, a meu ver, muito bem preparada, é interessada pelos doentes, disponível no serviço, e a sua ligação à faculdade – onde vai transmitindo a sua experiência e o seu saber aos mais novos – faz dela uma pessoa com uma visão diferente da Medicina Familiar. Oxalá o SNS saiba reconhecer o seu valor e cativá-la nas suas fileiras, para que não seja ‘mais uma’ a procurar noutros locais a completa realização profissional.
O desafio que me fez para nunca desistir dos novos colegas foi o mesmo que dizer: «Lembre-se de nós», «Conte connosco», «Estamos aqui para continuar a sua obra».
Só que isto pressupõe, ‘do outro lado’, uma reciprocidade, isto é, um voto de confiança. E que voto de confiança é este? É sermos capazes de nos abandonarmos nas suas mãos e aceitarmos incondicionalmente os seus critérios.
Ninguém melhor do que o médico assistente – neste caso, o médico de família – saberá como proceder com o seu doente e quais os cuidados de que necessita. Ora, o que infelizmente tem vindo a acontecer dia após dia é exatamente o contrário: são os doentes a pedirem aos médicos aquilo que eles entendem dever fazer.
Lembro-me das muitas conversas que tive com a Dra. Marta sobre este assunto, alertando-a para este ponto que considero fundamental. O médico é que decide; mas também tem o dever de explicar ao seu doente as razões do seu procedimento com uma linguagem que ele entenda, a fim de se estabelecer a tão desejável relação de confiança. Recorrer ao centro de saúde apenas para transcrever os exames complementares solicitados fora do SNS, além de ser ilegal, é uma desconsideração para com o médico de família e uma prática a que é preciso pôr fim.
Neste contexto, sabemos que a nova geração de médicos de família espalhados por esse país fora está de braços abertos para nos receber. Confiemos neles e colaboremos com eles. É nos centros de saúde que a prevenção começa e todos nós, cada qual no seu lugar, temos obrigação de lutar pela nossa saúde. Se é importante tratar as doenças, ainda é mais importante preveni-las.
Querida Marta, como era possível desistir de vocês? Sabes que sou um defensor nato das vossas potencialidades e que acredito na vossa geração. Na faculdade, não te esqueças de ir incutindo no espírito dos futuros colegas o princípio básico da nossa missão: «A saúde do meu doente será a minha primeira preocupação» (Hipócrates).
Tudo isto surge na sequência dos ‘pedidos’ que me foram feitos na altura em que cessei funções. Uns de uma forma, outros de outra, todos contribuíram para alimentar a saudade de um tempo que já não volta. A vida é assim mesmo e a História não anda para trás. Guardo no coração memórias de acontecimentos que me ajudaram a crescer. E todos vós, colegas e restante equipa, são testemunhas disso.
Não me esqueço dos ‘pedidos’ que me fizeram, mas há um que recordo de uma forma particular. Guardá-lo-ei para sempre: o último pedido