por Sofia Aureliano
Chegou o dia. Chegaram os 40. Para muitos, é apenas um dia a mais do que ontem. Se pensam assim, aviso já que ficarão desiludidos com esta a crónica, que é a mais egoísta de todas, de tão pessoal e intransmissível. Não fala do mundo lá fora. Só fala do mundo cá dentro.
Agradeço a companhia nestas primeiras linhas, mas não quero defraudar expectativas. Podem (e talvez devam) sair nesta paragem. Convido-vos a regressar para a semana, quando a normalidade estiver restabelecida.
Seguindo viagem.
Acredito que, desse lado, haja também quem me compreenda e até se reveja nalguns pontos desta catarse egocêntrica.
Eu, que habitualmente adoro celebrar aniversários, de forma tão exacerbada e entusiasta que chega a ser incompreendida e considerada imprópria para maiores de 18 anos, vejo-me agora numa encruzilhada psicológica, provavelmente agravada pelo inusitado contexto pandémico, mas que seria absolutamente imprevisível há uns anos.
Chego hoje à marca dos 40, aqueles que já ouvi chamarem de “novos 30”, ternurentos e mais não sei o quê… e sinto-me como uma prisioneira num relógio descontrolado, que acelera o ritmo sem me deixar viver o tempo. Por fora, estão as quatro décadas. Por dentro, não sei dizer quantas estão.
Sei descrever o sentimento de ansiedade, preocupação, até de angústia que me faz acelerar a pulsação e me dificulta a respiração. Se for ao Dr. Google pesquisar sintomas, acabo decerto diagnosticada com um ataque de pânico. Falta perceber porquê.
1. Estar onde se quer. É tão difícil responder a isto como à clássica pergunta sobre o que é para nós a felicidade. É tanta coisa e não são tantas outras. Não vou fazer deste texto um alinhamento de sucessos e conquistas. Seria o cúmulo do autofoco e, ainda por cima, infrutífero, porque não são esses que me tiram o fôlego.
Preciso de me concentrar no que ainda não foi feito. Nas metas que não atingi, eu e a sociedade. No porquê de não estar(mos), em alguns casos, onde acharia que devia(mos) estar.
Respiro profundamente e reflito.
A culpa não é dos outros, mas também não é só minha.
Em 2021, esperava uma sociedade diferente. Certamente não antecipava uma pandemia mundial, mas também estava longe de pensar que me assolassem tantas preocupações em relação ao mundo e, em particular, a nós, portugueses.
Sinto que estamos à deriva, abatidos, infelizes e, o pior de tudo, resignados. Não me revejo, de todo, na apatia que me rodeia, mas sinto que ela também me destrói o ânimo. E temo ser arrastada para o agregado daqueles que deixaram de lutar porque já não têm forças. Os 40 não são isso, certo?
Ainda posso dar luta, contribuir, abanar, juntar a voz aos indignados.
Tenho medo que o passar dos anos me retire a força para reagir e me condene ao conformismo e, pior, ao cinismo. Não quero ser status quo. Nem aceitá-lo de forma passiva.
2. Ainda vou a tempo?
Quando digo aos meus alunos que devem aproveitar cada minuto da sua formação para se prepararem para um mercado de trabalho que está lá fora de braços abertos para os receber, sinto que lhes estou a mentir descaradamente. Não por má fé, mas de forma inteiramente consciente. Independentemente de quão preparados eles estejam e de quão capazes forem, o que os espera, na grande maioria das vezes, são empregadores que querem pagar pouco por quem tem muita experiência, e não dar oportunidade de ganhar experiência mesmo a quem está disposto a receber nada.
Este retrocesso é angustiante porque há uns anos não era assim. Havia mais tempo para formar, acompanhar, ajudar a crescer.
Eu fui abençoada por ter quem investisse em mim. Retribuo, tanto quanto posso, a investir nos outros. Mas, hoje, parece que a regra é não haver tempo para dar tempo aos jovens de fazerem o seu caminho e exige-se deles o proverbial impossível: que nasçam ensinados.
Se é assim em 2021, como será daqui a dez anos, quando for o meu filho o jovem à procura de quem lhe dê tempo e tenha vontade para investir nele?
É um “salve-se quem puder” que nos torna mais desumanos e menos felizes. Tudo o que não queremos que os nossos filhos sejam.
Mas o que há a fazer? Eu própria sou velha demais se quiser mudar de funções e nova demais se quiser evoluir e assumir mais responsabilidades. Como se a idade fosse um carimbo que nos poem na testa e nos define o conteúdo: o que fomos e o que podemos vir a ser. Aos 40, parece já não haver muitas estradas para mudar de sentido. Se escolheste ir para a esquerda, precisas de muita coragem para trocar as voltas à vida e conseguir virar à direita. Porque a vida vai cobrar-te caro a ousadia e o azar de não teres acertado à primeira.
3. Fé no ser humano.
Não quero que este seja um texto derrotista, cinzento, sombrio. Mas espero deixar aqui todas as nuvens para sair de céu limpo e sorriso no rosto.
Acho que vivemos uma crise de fé. Não falo de religião, falo de humanidade.
Somos desconfiados no primeiro contacto, incautos na formulação de juízos, atribuímos os rótulos que estão mais à mão e que a maioria segue. Somos maus, como dizemos que as crianças são umas para as outras quando dizem cruelmente a verdade.
Mas elas têm a desculpa da inocência. E nós? Que desculpa temos?
Somos maldosos ou malformados por diversão? Não temos consciência do mal que provocamos no outro?
É preciso parar para pensar nos nossos atos, nas suas consequências e, sobretudo, ter fé. Não devemos aceitar-nos, passivamente, como mais um agente de uma sociedade doente.
Quanto mais contribuirmos para a divisão, o afastamento e a descrença, mais enferma estará a sociedade e, por arrasto, todos nós. Já o disse antes e é a minha crença profunda: só saímos deste barco se remarmos juntos.
4. “Não tens idade para isso”. Resumo nesta frase o fundamento de toda a minha melancolia. No alto dos meus 40 já me é esperada maturidade, talvez até alguma sapiência, e sou objetivamente responsável por todos os meus atos. Receio que se instale na minha cabeça uma voz empertigada que me diga, a cada passo: “a partir de agora, não tens idade para isso!”.
Para quê? Para usar calças rasgadas? Para pintar as unhas de amarelo fluorescente? Para rapar o cabelo? Para fazer tatuagens?
Para ser ridícula.
É isso que nos chamam quando fugimos ao padrão, quando quebramos a regra e agimos de forma diferente do que é “suposto” para a nossa idade. Não sei quem determinou o que é apropriado, mas sei que sei que se não o seguirmos somos estranhos que a sociedade enjeita como patinhos feios e que despertam a atenção de grupos de alinhadinhos bem engomados, que ganham assim um novo alvo a abater, por tempo indeterminado.
A verdade é que, antes dos 40, já tinha limitações. Outros contextos que me moldavam o comportamento. Ser mãe, ser professora, ser funcionária pública, ser assessora política. Mas o molde até aqui foi apenas no aspeto exterior. Como se a forma como nos vestimos ou a nossa aparência dissesse alguma coisa sobre a nossa inteligência, a nossa dedicação ou capacidade de trabalho. Diz tanto mais sobre quem nos julga! Mas são as regras do jogo e aceitamo-las, porque isso é ser maduro e saber viver em sociedade.
Acredito que o medo real que hoje me assola é que, com os 40, venha a mudança interior. Me assalte a obrigatoriedade moral de ficar dentro da caixa e eu própria erga muros para não ultrapassar a fronteira do “dever ser” e do “dever parecer” que rege a maioria das pessoas com a minha idade.
Não tenho medo das rugas na pele. Mas estou apavorada com a ideia de me puderem crescer rugas na mente. Se isso estiver a acontecer, que me mostrem este texto. É a minha carta da Sofia que sou hoje para aquela que não quero vir a ser.
De resto, é dia de festa.
Vou festejar sempre o envelhecer do corpo, desde que nunca me envelheça a alma.