Democracia e liberalismo

O liberalismo é o romantismo na política. Daqui decorrem as suas preferências, as suas prioridades, a começar pela liberdade individual e colectiva.

por Maria de Fátima Bonifácio
Historiadora

Num dos textos reunidos no livro As Minhas Razões, (Lisboa, Lello, 1906), João Chagas, para encurtar discussões, põe tudo em pratos limpos: «Precisamente porque sou um democrata é que não sou liberal.» Bem sei que o demo-liberalismo do século XX pode ter contribuído para confundir as coisas, mas quem escreve sobre esta matéria deveria ter o cuidado elementar de se informar minimamente sobre ela.

Da Grande Revolução francesa de 1789 saíram três – três – correntes de pensamento político bem diferenciadas filosófica e ideologicamente: o conservadorismo, o liberalismo e o democratismo (ou radicalismo). O conservadorismo, por motivos que não há espaço para desenvolver, desempenhou um papel apagado nas vicissitudes políticas do século XIX. Pelo contrário, democracia e liberalismo ocuparam praticamente a totalidade da cena política. Mais importante, o principal fulcro das discórdias e lutas políticas que dilaceraram esse século residiu precisamente na competição pelo poder entre estas duas forças políticas antagónicas. O caso português ilustra esta afirmação para além de toda a dúvida razoável. (A Monarquia Constitucional, 1807-1910, várias edições, séc. XXI.)

O liberalismo, nas suas origens e no seu desenvolvimento no séc. XIX, nunca foi democrático: afirmava o primado do indivíduo e o caráter transcendente do ser humano em relação à sociedade. Já o democratismo afirmava o primado da sociedade e considerava o ser humano como mera imanência desta. O liberalismo não comportava a hipótese de uma sociedade assente em fundamentos puramente laicos, nos quais via barreiras demasiado frágeis para obstar a que a liberdade degenerasse em licença; e, noutro plano, não achava que o homem pudesse «encontrar fim em si mesmo». O democratismo era ferozmente anticlerical e tendencialmente ateu. O liberalismo afirmava a impossibilidade de uma sociedade igualitária, entendendo que essa ‘utopia’ só seria teoricamente realizável no quadro de um Estado despótico.

Recordo Alexandre Herculano, um velho liberal: «Quanto mais igual for uma sociedade menos livre ela será.» Porque só o Estado poderia, através de leis repressivas, eliminar as desigualdades geradas pela mecânica espontânea da sociedade. Sendo a sociedade por definição desigual e hierarquicamente estratificada, a limitação dos direitos políticos nada tinha, naquela época, de chocante. Também a este respeito Herculano foi lapidar: «Que as leis se afiram pelos princípios eternos da Verdade e da Justiça, e pouco me importa que não tenham a aprovação de maiorias ignaras.» Já a abolição do censo eleitoral, pelo contrário, foi uma reivindicação clássica do democratismo. A igualdade civil, essa sim, era uma real possibilidade, porque derivava «de outra ordem de ideias, da ordem moral», quer dizer, da igualdade essencial dos homens enquanto seres humanos (não enquanto membros de uma sociedade). Na perspetiva liberal, a apregoada igualdade política não passava de uma mistificação destinada a lisonjear o povo, encobrindo o facto de que ela só poderia existir «quando houvesse igualdade de força, de ação social». O mesmo Herculano advertia: «Da falsa ideia da igualdade política em relação à vida real […] pode provir um mal imenso para a liberdade.»

Era também o liberal e antidemocrático Garrett que em 1837 proclamava no Parlamento que o único princípio social indisputável era o de que «o homem tem o direito a ser livre, porque tem o direito a ser feliz». Garrett reputava o apregoado «nivelamento da classe média» uma «fábula para néscios», porque a classe média não existia sem as extremas. A igualdade era um deliberado embuste ou uma quimera com que os democratas tentavam iludir o povo e captar o seu apoio; era uma falsidade apregoada por oportunismo: «O maior número dos habitantes de um país há de sempre ser condenado, pelas exigências da sociedade, aos lavores afadigosos e materiais que embrutecem e abatem».

O democratismo, com a sua propaganda subversiva, nunca cessou, sobretudo até 1848, de tentar captar adeptos para uma golpada revolucionária; aliás, o revolucionarismo, o ‘movimento’ constante era uma das suas características: a crença nas virtualidades da violência política para destruir uma ordem social que tinha por injusta, iníqua mas corrigível até à perfeição. O liberalismo abominava este espírito revolucionário que presidia a todo o discurso democrata, falado no Parlamento ou estampado nos jornais. Para os liberais, as sociedades eram organismos complexos que podiam e deviam evoluir com ordem e tranquilidade, sem sobressaltos e violências. Para os democratas, a revolução era um atalho proverbial para o progresso. Estamos, portanto, perante duas famílias políticas radicalmente diferenciadas: uma defensora da rutura revolucionária, outra reformista e gradualista.

Uma coisa é a ideologia, a doutrina, outra é o sistema político. Também aqui liberais e democratas se digladiaram até à República. A partir da Restauração dos Bourbons em França, em 1814, concebeu-se um arranjo político em que a monarquia convivesse com a soberania nacional. Era um meio termo, destinado a manter o sossego entre democratas e liberais, por um lado, e legitimistas por outro. O soberano, Luis XVIII, acedeu a outorgar aos franceses uma Carta Constitucional em que se mantinham e garantiam certas conquistas da Revolução de 1789 consideradas aquisições civilizacionais: a separação dos poderes judicial, legislativo e executivo, os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, eleições censitárias para o Parlamento. Mas essa Carta foi uma outorga régia, não uma Constituição emanada da pureza da soberania nacional. Os democratas – também chamados radicais – nunca se renderam completamente a este compromisso, que traía um princípio fundamental da Grande Revolução de 1789 e de todo o seu ideário. Sempre contestaram a legitimidade da outorga em nome da soberania do povo. Já aos liberais, a monarquia, desde que constitucional, não ofendia: era o corolário de uma organização social hierarquizada e, enquanto tal, uma garantia de ordem e tranquilidade social. Os liberais eram conservadores, situavam-se à direita do regime da Monarquia Constitucional, que deixava de fora os legitimistas, adeptos da antiga monarquia absoluta. Mas tal não satisfazia as ambições políticas dos democratas. Até 1848, data da derrota da Primavera dos Povos na Europa, a contestação da Monarquia Constitucional suscitou, cá como lá fora (especialmente em França), abundantes refregas, levantamentos e tentativas revolucionárias contra a Carta Constitucional, um espinho cravado na majestade soberana do povo.

Mas, donde vem o liberalismo? Francisco Louçã conhece muito mal o liberalismo político. Não cita nenhum maître à penser desta corrente política, nomeadamente Benjamin Constant, Alexis de Tocqueville, Pierre-Paul Royer-Collard e François Guizot. A omissão de Benjamin Constant é particularmente chocante: «La liberté n’est d’un prix inestimable que parce qu’elle donne à notre esprit, de la justesse, à notre caractère, de la force, à notre âme, de l’élévation. Si, pour établir la liberté, vous avez recours au despotisme, qu’établissez-vous? De vaines formes. Le fonds vous échappera toujours.» É um dos mais proeminentes liberais do século XIX que assim nos exorta. Atentemos em algumas das palavras que usa: esprit, caractere, âme. Espírito, caráter, alma! que linguagem tão invulgar num mundo intelectual ainda dominado pelo Iluminismo setecentista.

Mas lá está: Francisco Louçã não percebeu que o liberalismo é o romantismo na política.

Em 1813, Madame de Stäel publica clandestinamente a sua obra De l’Allemagne. O secretismo compreende-se: Napoleão ainda era imperador da França e ostracizara essa famosa femme de lettres cheia de opiniões que lhe eram adversas. Stäel estanciara na Alemanha durante um período relativamente longo, conversara com Schiller e Goethe, e apercebera-se de que naquela Alemanha desconhecida fervilhava uma absoluta novidade: autores que haviam voltado as costas ao racionalismo iluminista e se dedicavam a escrever segundo os sussurros da sua alma, dos seus sentimentos, das suas emoções, ou seja, escreviam a partir das fontes de inspiração privativas de cada um. Stäel encontrou-se no meio dos inventores do Romantismo, do qual diz Isaiah Berlin que terá sido «a mais radical, e sem dúvida mais dramática, para não dizer aterradora mudança na perceção [Outlook] humana dos próprios homens e do mundo nos tempos modernos.»

O liberalismo é o romantismo na política. Daqui decorrem as suas preferências, as suas prioridades, a começar pela liberdade individual e coletiva. Muito lógica e compreensivelmente, não consta dos primórdios do liberalismo clássico a preocupação de legalizar sindicatos. Ignoro se houve, de facto, uma «traição dos intelectuais» (Julien Benda, 1927), mas certamente não houve nenhuma «traição dos liberais».