Por Sofia Aureliano
1. Manifestação contra os manifestantes. A velha máxima de “a minha liberdade termina quando começa a do outro” parece andar esquecida por estes dias. Um grupo de manifestantes que tenta boicotar ações de vacinação com protestos atulhados de ataques verbais e comportamentos a roçar a violência, onde chega a ser necessária intervenção policial, está a afirmar o seu direito à liberdade de escolha, à liberdade de expressão e de manifestação, com recurso a tudo o que representa o seu contrário. Quando agridem quem pensa de forma diferente e tentam, à força, impedir o comportamento distinto do seu estão a violar os direitos dos outros.
Os que enchem o peito para dizer que são livres e que, no exercício dos seus direitos, estão contra a vacina, são os mesmos que bloqueiam acessos, verbalizam insultos e agridem moralmente quem está do lado contrário da barricada. Como se isto fosse uma guerra de certos e errados, de infiéis contra os justos.
Justo é tomarem a vossa decisão de não serem vacinados – a vacina não é obrigatória, sublinhe-se! – e deixarem os outros trabalhar.
Já basta as consequências que a vossa decisão isolada poderá vir a trazer para o todo. E, mesmo assim, não vêm um movimento de agressividade contra quem não se quer vacinar e está a por em risco os mais vulneráveis, pois não?
Somos um povo pacato. Deem graças por isso. Respeitem a liberdade dos outros e honrem os direitos que tanto defendem.
2. Certificado para reincidentes: afinal o problema não se resolveu. Na semana passada, o PSD requereu que se resolvesse com urgência o problema informático que estava a impedir a emissão de um segundo certificado de recuperação para pessoas que tivessem sido infetadas com Covid-19 mais do que uma vez. Essa falha técnica estava a reter um casal nas Maldivas, que não conseguia regressar a Portugal, apesar de já ter alta médica, porque o certificado digital Covid é requisito obrigatório para circular no Espaço Europeu. No dia seguinte à submissão do requerimento no Parlamento, o casal que estava retido teve acesso ao seu certificado e conseguiu finalmente viajar. Chegou, são e salvo, a Portugal, com uma história caricata na bagagem. Aparentemente, o tema estava ultrapassado. Contudo, continuam os relatos de pessoas que não conseguem emitir o certificado digital de recuperação pela segunda vez e que recebem como resposta oficial dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) que “o certificado de recuperação apenas se aplica ao primeiro teste positivo, conforme regulamento europeu”. E que, “não haverá, com base nas regras atuais, lugar a emissão de segundo certificado”.
Ora, esta resposta foi dada a 12 de agosto, dia em que a situação foi dada como resolvida pelo Ministério da Saúde, e que o casal português recebeu o seu segundo certificado. Em que é que ficamos? Foi uma emissão única para sossegar a imprensa e calar o PSD? Ou vão mesmo resolver o problema efetivo dos cidadãos nestas circunstâncias?
Eu sei que é verão e há menos gente a trabalhar. Mas, como já lembrei aqui noutras ocasiões, o Covid não foi nem vai de férias. E já bastam os estragos que tem feito na vida de todos nós. Não precisamos de falhas técnicas, solucionáveis, nem de manobras de diversão para juntar à nossa lista de problemas.
Resolvam, por favor. Para ontem, como já tinham anunciado que tinham resolvido.
3. A Polícia não chega a todo o lado. Com o aumento das funções dos agentes, que agora têm como prioridade máxima a fiscalização do cumprimento das regras de prevenção e combate ao Covid-19 na realização de eventos de pequena e média dimensão, e não tendo sido aumentado o número de efetivos, alguma coisa teria de ficar para trás. E o que tem estado a falhar é a resposta da Polícia àquelas que seriam as suas normais tarefas. As equipas não esticam, os contingentes não foram adaptados às novas exigências, pelo que o vírus trouxe uma fase de bonança para os pequenos delinquentes e criminosos.
A história que conto é na primeira pessoa: precisei de chamar a polícia por causa de distúrbios na via pública e ruído de madrugada, e a resposta que obtive foi “lamentamos muito, mas não temos ninguém para mandar aí”. Isto, no concelho de Cascais, Área Metropolitana de Lisboa, num dia de semana.
Bem sei que é importante transmitir a mensagem de controlo efetivo e fiscalização ativa para que as regras sejam cumpridas. Mas o resto dos atos puníveis não podem ser deixados à solta, sob pena de se perceber que, neste momento, o crime até compensa. Parece-me que as prioridades devem ser revistas e as equipas adequadas à dimensão da nova lista de funções. Caso contrário, passamos a viver na República das Bananas. Provavelmente, sem Covid, mas muito mais contagiosa.
4. O SNS desistiu dos médicos. Se o governo cumprisse as suas promessas, já estaríamos desde 2019 com todos os cidadãos cobertos com assistência por médico de família. Mas o governo não cumpriu e, desta vez, não pode culpar a pandemia pelo falhanço, porque a promessa é anterior ao vírus. O problema é crónico e há muito que se sabe bem qual é: os médicos não querem trabalhar no Serviço Nacional de Saúde. Não lhes são dadas as condições que o privado lhes dá e que, ao fim de mais de 20 anos a investirem na sua formação, bem merecem. Para quê trabalhar em espaços confinados, sem ar condicionado nem recursos básicos, sem meios complementares de diagnóstico, com listas de utentes completamente subdimensionadas e a ganhar um terço do vencimento se podem ganhar três vezes mais e ter todas as condições para exercerem eficientemente o seu trabalho? Parece uma escolha óbvia, que qualquer pessoa faria, em qualquer profissão.
E não, os médicos não são super-heróis que vivem do ar e têm obrigação de sacrificar as suas vidas em prol dos outros. São pais e mães de família, com agregados para sustentar, que trabalham habitualmente mais horas do que o cidadão comum, são altamente especializados e, consequentemente, dificilmente substituíveis, e devem ser valorizados por isso. Enquanto o Estado empregador não perceber esta equação, não vale a pena abrir vagas em concursos públicos, porque nem nas grandes metrópoles estes profissionais vão aceitar trabalhar. Veja-se o que aconteceu com o concurso de 230 vagas para médico de família para a área metropolitana de Lisboa, que nem chegou a metade das contratações.
Se alguma coisa a pandemia nos demonstrou foi a importância destes e dos restantes profissionais de saúde e de um Serviço Nacional de Saúde capaz, habilitado e robusto. Os tempos pós-Covid trarão desafios ainda desconhecidos mas que poderemos já imaginar que serão hercúleos. É agora que precisamos de conseguir captar e reter estes profissionais para dar resposta ao que aí vem, ao mesmo tempo que se resolve o que está em lista de espera (já bem longa). No intervalo entre os altos e baixos de uma pandemia a que ainda não vimos o fim.
Neste momento, a conclusão é óbvia: não são os médicos que estão a desistir do SNS. É o SNS que está a desistir dos médicos.
5. Afeganistão: o retrocesso eminente. Augusto Santos Silva disse em entrevista esta semana que o regresso ao poder dos talibãs não significa “risco de vida e segurança para as pessoas ou para a situação das mulheres”, em particular no seu direito à educação. Como é que um governante com a pasta dos Negócios Estrangeiros pode fazer tal profecia? E com base em quê que Santos Silva disse isto? “Porque os talibãs prometeram”.
Ah bom! Se eles prometeram, então toda a comunidade internacional pode sossegar porque os terroristas são malta de palavra e se eles dizem que não haverá um retorno da violência ao Afeganistão, é porque não vai haver. À confiança.
As dezenas de milhares de cidadãos afegãos que fugiram das suas casas, e as centenas que foram mortos ou feridos nas últimas semanas, são danos colaterais. Coincidências. Os milhares que querem sair do país são uns precipitados sem justificação. As listas com os nomes de todas raparigas com mais de 14 anos que os talibãs têm para “oferecer” para casamento aos combatentes é uma prática absolutamente normal, que antecipa que os direitos destas menores estão completamente assegurados.
E as declarações dos combatentes talibãs à BBC, a 13 de agosto, antes de invadirem Cabul, a justificarem a violência com o facto de os cidadãos não abandonarem a cultura ocidental e que, portanto, “terão de ser todos mortos”, demonstra bem que tolerância será a palavra de ordem naquele território.
Ainda bem que temos um ministro dos Negócios Estrangeiros informado, competente, sustentadamente otimista. É de fé que falamos, quando se espera selar acordos com terroristas com diplomacia. Disso, de tarouquice ou sobranceria. Venha Santos Silva e escolha.