No dia 28 de Agosto de 1947, o quinto Miura que entrou na praça de Linares não era absolutamente negro. Tinha umas listas prateadas ao longo do dorso. Manolete fitou-lhe os olhos raiados de sangue e, como sempre, não sentiu medo. Apenas o coração ligeiramente acelerado. Belmonte, um dos grandes escritores sobre touradas, profetizou um dia: «Saldrá un torero que toree bien el 90% de los toros…» Teve razão.
Esse toureiro nascera em Santa Marina, «el barrio torero de Cordoba», na Rua Tomás Cabrera 2º A, a 2 de Julho de 1917, e ganhou o nome completo de Manuel Laureano Rodríguez Sanchéz. Com o tempo tornou-se Manolete, tal como o seu pai, matador de touros. No momento em que cruzou o olhar com o touro da ganadaria Eduardo Miura que pesava 495 quilos e se chamava Islero, algo se quebrou no alinhamento dos astros. Alguns chamam a isso o Destino.
Outros chamam-lhe, simplesmente, a vida. «Eu vi Manolo González/e Pepe Luís, de Sevilha:/precisão doce de flor/graciosa, porém precisa (…)/Mas eu vi Manuel Rodríguez/Manolete, o mais deserto/o toureiro mais agudo/mais mineral e desperto», conta-nos o poema de João Cabral de Mello Neto. Toureiro mineral. Mas toureiro cansado, também, nesse fim tórrido de Agosto.
Na véspera, Manolete viajara de carro, pela noite, desde Santander, na companhia do seu amigo Camará. Caiu na cama desfeito. Santander fora um sucesso, a corrida de Linares era uma corrida menor, que não lhe exigiria tanto esforço. Isto diziam os jornais. Porque Manolete repetia para si próprio, vezes sem conta: «É preciso dar tudo pelo público que acorre a ver-nos!» A exigência não estava nos touros, estava nele.
Linares encheu-se de aficionados plenos de entusiasmo. A ovação que Manolete recebeu quando entrou na arena parecia uma teimosia de cada homem a querer aplaudir mais do que o seu vizinho do lado. Mas Manolo Rodríguez não queria ficar com os aplausos só para si: chamou os seus parceiros de lide, Gitanillo de Triana e Luis Miguel Dominguín para perto de si. Então, as palmas redobraram.
Acompanhar Manolete no domínio dos touros fazia quem toureava a seu lado atingir o ponto mais alto das suas artes. Dominguín vinha para arrasar. Elegante com o capote, desferiu três pares de bandarilhas. A faena de muleta valeu que lhe concedessem uma orelha. O cigano de Triana, faz de Pimpi, outro Miura, o que lhe apetece. A tarde está ardente. Uma ligeira brisa roça pelo chão e ergue a terra em redor dos cascos dos monstros negros. Manolete diverte-se com uma faena perfeita e faz rir o público com uma festa suave no focinho do touro. A sua figura magra, elegante, brilha no traje de luces. Infame, a morte está escondida à sua espera, entre barreiras.
O quinto touro é, em primeiro lugar, entregue a Ramón Atienza que, à custa de bandarilhas e faz recuar, amedrontado, contra as tábuas. Depois, o seu olhar assustado, as íris negras por entre os riscos vermelhos das córneas, fixa-se em Manolete. Quatro manoletinas perfeitas acendem o público. O bicho, acossado, fareja a morte. A sua morte. O toureiro perfila-se para a estocada final. Está pronto. Devagar, marcando os tempos, faz a espada entrar pelo pescoço de Islera mas, ao mesmo tempo, o corno inimigo rasga-lhe o músculo da perna direita e atira-o em direção ao céu para cair, depois, de cabeça sobre a arena que parece feita de pedra. Por toda a parte havia sangue. O sangue de Islero e de Manolete misturados.
Às cinco e sete em ponto da manhã
Islero, o touro Miura que matou Manolete, entranhou-se na cultura popular de Espanha. De tal forma que, imagine-se, o projeto fracassado que exauriu muita da economia espanhola durante anos a fio de se construir uma bomba atómica em Espanha se chamou Projecto Islero. Muitos são aqueles que recusam a frase batida – «el toro que mató a Manolete!» Não!, dizem. Ou melhor, gritam. Não foi o touro que matou Manolete, O Miura limitou-se a corneá-lo. Depois, no hospital, um erro médico, um produto norueguês que lhe foi injetado, a incompetência e o azar misturados, tudo isso matou Manolete. Corações ainda doridos recusam-se a dar a Islera a alegria dessa morte.
O rasgão que Manuel Laureano tinha na coxa era de tal forma grave que foi cosido ainda na praça de touros. Só depois foi transportado para o hospital. Dizem os andaluzes que o primeiro gesto que contribuiu para a morte de Manolete foi quando um tipo diferente de sangue entrou no meio das várias transfusões a que foi sujeito. A Andaluzia ainda carrega a culpa de ter sido a província que viu morrer Manolete. Mas foi, igualmente, a província que o viu nascer. Por seu lado, o
Triângulo de Scarpa é uma das expressões malditas do mundo taurino. Ganhou o nome de Antonio Scarpa, um anatomista italiano, e é a área triangular pela qual passam o nervo crural e as suas ramificações, e os vasos femorais. Um daqueles pontos frágeis do tão complexo corpo humano. No hospital de Las Ventas, a ordem era a de continuarem com as injeções de sangue para compensar o que se ia perdendo numa hemorragia horrenda. Como nada parecia capaz de impedir que Manolete se esvaísse até à morte, foi tentada uma solução inventada na Noruega no tempo da II Grande Guerra e que consistia em ministrar um complexo sanguíneo liofilizado que era necessário misturar com soro antes de o inserir no corpo do ferido.
Quando o processo teve início, teve também início o caminho de Manolete em direção às planícies da eterna saudade. Queixava-se que deixara de sentir a perna afetada, e não tardou a murmurar que já não conseguia sentir nada da cintura para baixo. A teoria debatida durante anos, e que continua, de vez em quando, a assumir à superfície, era de que as placas de sangue que tinham vindo da Noruega não estavam em condições. De tal forma que já tinham sido responsáveis pela morte de 150 trabalhadores numa explosão que abalou o Centro da Armada de Cadiz dez dias antes.
«Don Luis, non veo…»: foram as últimas palavras de Manuel Laureano Rodríguez Sanchéz. Lívido, o médico, dr. Luis Jimenez Guinea, cirurgião-chefe da praça de touros de Linares, viu como os olhos de Manolete ficaram, de repente, baços. Não havia nada a fazer. A Senhora da Gadanha largara o seu lugar entre barreiras e viera reclamar o seu escolhido. Às cinco horas e sete minutos da manhã do dia 29 de Agosto de 1947, Camará, seu irmão da vida, fechou-lhe as pálpebras e entregou-o à morte.
Precisamente doze horas e sete minutos depois daquelas cinco horas que Federico Garcia Lorca deixou escritas para a imortalidade: «A las cinco de la tarde/Eran las cinco en punto de la tarde/Un niño trajo la blanca sábana/a las cinco de la tarde/Una espuerta de cal ya prevenida/a las cinco de la tarde/Lo demás era muerte y sólo muerte/a las cinco de la tarde».
Aos cinco anos de idade
Aos cinco anos de idade, Manolete viu morrer Manolete. O pai partiu deixando a família sem recursos. Mas deixou-lhe um futuro: filho, sobrinho, primo de toureiros, Manolo iria ser toureiro. O rapazinho triste e enfezado não tardaria a domar bezerros com os companheiros da Plaza de la Lagunilla e do Campo de la Merced. A pouco e pouco foi lidando touros, touros a sério mas não monstros negros como Islera. Feiras e festas onde se abrisse, por entre os curiosos, uma arena improvisada.
Em seguida, lado a lado com o seu primo Bebé Chico, o preferido da toureira Juanita Cruz. Debutou como novilheiro no Domingo de Ressurreição de 1931. Durante um ano fez parte de um espetáculo cómico-taurino protagonizado por um grupo de nome Los Califas. No dia 1 de Março de 1933, em Madrid, na Plaza Tetuán de las Victorias, entrou numa tourada a sério com dois mexicanos e outro iniciante como ele, Varelito Chico. Pela primeira vez tem o seu nome no jornal: gabam-lhe a harmonia dos movimentos, veem nele um futuro grande estoqueador.
Foi à guerra, continuou toureando como e quando podia, tornou-se apoderado de José Flores, o Camará, o homem que lhe cerrou as pálpebras para sempre. Recebe a alternativa em Sevilha, com apenas 21 anos, das mãos de Manuel Jimenez Moreno, El Chicuelo, o homem das chicuelinas.
Manolete foi um cometa que abandonou Espanha e, no México, ganhou dinheiro como nenhum matador antes deles tinha ganho. O jornalista Antonio Alvarez Barrios escreveu no El País: «La plasticidad del toreo vertical de Manolete, unida a su honestidad y su entrega, le convirtieron en un fenómeno de atracción nacional e internacional. Con él se cumplía la gran profecía de Belmonte: “Saldrá un torero que toree bien el 90% de los toros… “». Para Islero sobrou a frase assassina: ser el toro que mató a Manolete». Ainda hoje se aplica àqueles que vivem assolados por todo o tipo de azares.
A filosofia do toureio
Manolete morreu com trinta anos. Era ainda um jovem na plenitude da sua popularidade. Se o número cinco marcou a sua vida – «El viento se llevó los algodones/a las cinco de la tarde/Y el óxido sembró cristal y níquel/a las cinco de la tarde./Ya luchan la paloma y el leopardo/a las cinco de la tarde» – teve a alcunha de El Cuarto Califa, ganha no tempo em que repartia com Rafael Molina Lagartijo, Rafael Guerra Guerrita, Rafael González Madrid Machaquito, as risadas vindas das plateias enquanto dominavam as bestas, a sol e sombra.
A sua morte foi a Tragédia de Espanha. Nunca é o touro que mata o homem, é sempre o homem que mata o touro. E depois dá, vaidoso, passos arrastados pelo chão, a volta da arena para receber uma chuva de flores e de chapéus.
Eugeni d’Ors, escritor catalão, definiu os toureiros como Manolete de «Toureiros Escultóricos». Em quatro linhas explicava a sua teoria: «No se niegue, por otra parte, que, dentro del ciclo monoletiano, la fiesta de los toros tiende a eliminar o atenuar, como secundarios, ciertos valores del dinamismo». Manolete era, provavelmente, o espanhol mais famoso do pós-guerra e entrava no campo da filosofia. As fotos que eram expostas nas bodegas de Sevilha e de Córdova, mostravam sempre um gesto perfeito congelado no tempo.
Esse momento apanhado como um pássaro que inicia o voo, fazia com que d’Ors e outros seus contemporâneos começassem a olhar para o toureio de uma forma dinâmica. A plasticidade do gesto podia ficar presa num negativo. Tudo o resto, em redor, se tornava imaginável, desde o borbulhar do sangue na ferida dos monstros negros, aos gritos da populaça que enchia as arenas como no tempo da velha Roma.
Domingo Ortega, outro dos precursores da teoria dos toureiros pictóricos, grande amigo de Ortega y Gasset que, aliás, lhe fez o prefácio para o livro El Arte del Toreo – afirmava por seu lado: «El torero es verticalidad mientras que el toro es horizontalidad». E a tourada é a metáfora da vida na qual um dos dois morre para que o outro possa viver a sua glória.
Por causa de Manolete, muito se filosofou sobre a tourada. Ortega, o matador, reduziu-se a uma frase: «Toro y torero son dos sistemas de puntos que varían correlativamente». Uma base de princípio científico? Santiago Navajas, jornalista, desenvolveu essa premissa: «Se Homero cantou na Ilíada a cólera de Aquiles, todas as corridas, quaisquer que sejam, consistem num poema épico que celebra a fúria do touro (sendo o toureiro, Heitor, a luz da inteligência que enfrenta a obscuridade da cólera, o ímpeto da fúria do cornúpeto). Uma fúria que não é arbitrária, salvo a exceção dos Miura, mas sim dirigida e que, assim sendo, o toureiro pode parar, dominar e temporizar. Neste sentido, Manolete e Ortega y Gasset significaram a auto consciência da tauromaquia tanto na arena como na tribuna. A espada e a pena alcançaram, na mão do toureiro e do filósofo, a pureza mais alta e a abstração mais elevada».
Manolete, o mais sublime dos dinâmicos, cumpriu a lei de que morrem cedo aqueles que os deuses amam. Ele, a quem a Gazzetta dello Sport chamou um dia O Beethoven do Toureio, desfez-se em sangue no preciso lugar onde fazia correr o sangue dos touros como se fossem rios nascendo de montanhas negras de quatro patas.
Voltando a Ortega y Gasset: «Nada es más español que la tauromaquia e eso es de una evidencia arrolladora que, durante generaciones, fue, tal vez, esa Fiesta la cosa que ha hecho más felices a mayor número de españoles». Para eles, a tourada fica no caminho da morte. A morte natural, que é a do touro, ou a morte trágica, que é a do toureiro. No dia 28 de Agosto de 1947, pelas cinco em ponto da tarde, a morte já decidira quem escolher.
Quando o corno de Islero rasgou a perna de Manolete até quase ao coração, o silêncio caiu sobre a arena. A trama tivera, com a raridade que faz dela assustadora, o final contrário. O povo acorrera aos milhares para ver a morte de Islero. E o Miura revoltou-se contra o destino que lhe quiseram impor.