Fibrose quística. Após “burocracias”, Márcia e Rafael veem Kaftrio aprovado

Com a aprovação da prescrição off-label, Márcia revela ao Nascer do SOL que espera poder ser a mãe que tanto quer para os seus filhos, de oito e três anos. Rafael, que luta contra a doença desde os dois anos, confessa querer realizar todos os sonhos que não conseguiu até agora.

Márcia Branco e Rafael Ferreira são dois jovens, de 27 e 28 anos, respetivamente, que sofrem de fibrose quística e eram, até à passada quarta-feira, os únicos dois doentes acompanhados pelo Hospital Santa Marta, em Lisboa, que não estavam aptos para receber o medicamento Kaftrio.

Segundo um apelo de Rafael nas redes sociais, publicado no início da semana, os processos de ambos encontravam-se “em fase de avaliação por parte da comissão de farmácia” do Centro Hospital de Lisboa Central, e a decisão deveria ter sido tomada no passado dia 9 de agosto, mas foi adiada para dia 23.

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Ao Nascer do SOL, explicam que o caso estava “pendente” devido às “burocracias” que impendem um processo de pedido off-label. “Em dezembro de 2019 foi provada a eficácia deste medicamento para mutações raras, que é o meu caso e do Rafael, foi comprovado em estudos in vitro. O que é certo é que na Europa a bula do medicamento ainda não foi alterada e o nosso pedido seria um pedido diferente off-label, o que pelo meio já sabíamos que ia haver muita burocracia”, explica Márcia.

“Tem de passar por várias comissões para a sua aprovação, por isso penso que o que estava a impedir a aprovação seriam os processos burocráticos implícitos no caso!”, acrescenta Rafael.

No entanto, no espaço de dias o cenário mudou e ambos viram o seu pedido de prescrição off-label – utilização de um medicamento que não foi objeto de avaliação e/ou validação por parte da entidade competente de cada país – aprovado.

Porquê? Segundo revelaram os próprios nas redes sociais, devido à médica que os acompanhou, que “foi humana o suficiente” para lutar pelos dois. “Mesmo eu esquecendo que, para além de minha médica, ela tinha vida pessoal, sempre se demonstrou disponível em ajudar-me e acalmar-me”, escreve Márcia. Rafael destaca também o “ser humano incrível” que considera “como família”.

Já ao Nascer do SOL, os jovens admitem que a pressão mediática, apelos de ativistas como Francisca de Magalhães Barros e os pedidos de ajuda nas redes sociais poderão ter tido influência na antecipação da decisão. “Sem dúvida que tudo isso ajudou porque supostamente a resposta seria dia 23, mas nunca garantidamente que seria dia 23. O que é certo é que veio antes de dia 23 e logo positivo, sem nenhum entrave pelo meio”, conta Márcia.

Rafael sublinha que, apesar de os media e de os apelos acabarem “sempre por criar alguma pressão para que os processos se agilizem mais rapidamente”, a “primeira pessoa que fez como que tudo isto acontecesse” foi a sua “médica assistente que contra todas as probabilidades se predispôs a fazer o pedido do Kaftrio” para ambos.

Márcia foi documentando alguns dos seus episódios na luta contra a doença nas redes sociais e revela que quando soube da aprovação do pedido, num misto de gritos e lágrimas, “nem acreditou”. Sente-se “eternamente em dívida” e confessa que quando começou a expor a doença nunca mostrou “a gravidade a que estava a chegar” e foi criticada por partilhar esses episódios da sua vida.

A jovem, que foi diagnosticada aos 13 anos, conta que “nos dias de hoje tudo é um desafio”. “Vivo praticamente entre quatro paredes porque não consigo andar muito, não consigo ir às compras devido ao cansaço com o peso de subir as escadas, tomar banho só sentada, não consigo brincar com os meus filhos [de oito e três anos], nem pegar no meu filho ao colo. É tudo um desafio quase impossível”, revela.

Agora, com a aprovação do medicamento, espera ter menos infeções respiratórias e poder ser a mãe que tanto quer para os seus filhos, além de recuperar toda a sua independência. “[Quero] aproveitar ao máximo esta segunda oportunidade de vida”, frisou.

Por seu lado, Rafael lidou com a fibrose quística praticamente toda a sua vida – foi diagnosticado com apenas dois anos – e admite que um dos maiores desafios da doença é o facto de ser “invisível aos olhos de quem não está dentro no assunto” e que “as pessoas muitas vezes têm dificuldade” em perceber as suas dificuldades e o que sentem.

Tem esperança que o medicamento lhe “consiga devolver a vida” que já não tem “há bastante tempo” e que possa agora “concretizar todos os sonhos”.

“Espero que este medicamento me consiga devolver a vida que já não tenho há bastante tempo, uma vida com qualidade em que possa respirar fundo sem esforço e pronto para concretizar todos os sonhos que tenho que até então seriam impossíveis de realizar”, afirmou.

Recorde-se que o Kaftrio foi aprovado, há cerca de um mês, pela Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde – Infarmed para utilização nos hospitais do Serviço Nacional de Saúde (SNS), num determinado regime terapêutico, em doentes com 12 ou mais anos, depois de ter ficado conhecido em Portugal após o apelo de Constança Bradell nas redes sociais. A jovem sofria de fibrose quística e morreu a 11 de julho deste ano, aos 24 anos.