Agora, 474 anos após a sua morte, seria fácil dizer que Martinho da Vila compôs a sua feminina canção em sua honra: «Já tive mulheres de todas as cores/De várias idades de muitos amores/Com umas até certo tempo fiquei/Pra outras apenas um pouco me dei/Já tive mulheres do tipo atrevida/Do tipo acanhada, do tipo vivida/Casada carente, solteira feliz/Já tive donzela e até meretriz/Mulheres cabeças e desequilibradas/Mulheres confusas, de guerra e de paz..» A letra encaixa na perfeição na vida de Henrique VIII, rei de Inglaterra de 22 de Abril de 1509 até à sua morte (28 de Janeiro de 1547). Aquele que foi, para muitos, o mais importante monarca de Inglaterra, o homem que libertou o país do jugo papal e criou a sua própria igreja, a Igreja Anglicana, assumindo-se como seu chefe supremo, dissolvendo conventos e mosteiros, primeiro rei a lançar as bases da marinha que viria a tomar conta dos mares do mundo, escritor, poeta, compositor, podia entrar com à vontade na lista dos grandes mulherengos, não fosse o adjetivo, no seu caso, um eufemismo, já que a palavra vem a propósito.
Para os registos da História somou seis casamentos. O primeiro com Catarina de Aragão, filha do rei Fernando e da rainha Isabel, de Espanha, viúva do seu irmão mais velho, Artur, que morreu antes de chegar ao trono. Diz-se que Catarina foi a mulher que Henrique verdadeiramente amou, embora não seja fácil de acreditar tal as tranquibérnias com que embrulhou a sua separação, na altura embeiçado pela jovem Maria Bolena, irmã da sua segunda mulher, Ana Bolena. Confuso? Olhe que não. As coisas ainda nem começaram sequer a desenrolar-se, tenha paciência.
Henrique vivia obcecado com o legado da família Tudor que substituiria a de York no trono após a Guerra das Rosas que depôs o seu tio-avô Ricardo III. Catarina viveu com Henrique durante 23 anos mas não foi capaz de lhe dar o filho que este tanto ansiava. Pariu, por entre um razoável número de abortos espontâneos, uma menina que ganhou o nome de Maria. Ora, Catarina tinha uma aia chamada Elizabeth Blount, mais conhecida por Bessie, que passou com frequência pelo leito real de Henrique e conseguiu dar-lhe o tão desejado rapaz, Henrique Fitzroy, o único filho ilegítimo que se conhece da tão ativamente sexual figura. Mas Bessie não ia além de um entretém perante a nova menina bonita da corte, Ana Bolena que, juntamente com a irmã, Maria, tinha passado uns anos ao serviço da rainha de França. Em 1520, já Maria, apesar de casada, caíra sob os encantos de Henrique. Mas Ana, feita de outra cepa, tinha a ambição de ser rainha e não suportava a ideia de se ficar pelo papel de amante.
Era necessário, para isso, afastar Catarina do trono. Tarefa nada fácil. Bem pôde Henrique suplicar ao Papa Clemente VII que lhe dissolvesse os votos contraídos pela Igreja, que de Roma só ouviu a palavra NÃO. No ano de 1527, o Vaticano foi invadido por Carlos V, Imperador do Sacro Império Romano, e Clemente teve de refugiar no Castelo de Sant’Ângelo. De mal a pior, tendo em conta que Carlos era o sobrinho preferido de Catarina. Dois protestantes com grande peso nas opiniões de Henrique, Thomas Cranmer e Thomas Cromwell, aconselharam o rei a romper o casamento com base no facto de Catarina já ter consumado um casamento anterior, com Artur, embora esta garantisse a pés juntos que era absolutamente virgem quando aterrara na cama do novo rei. Estando-se nas tintas para o Papa, Henrique nomeou Cranmer Arcebispo de Canterbúria que, nessa função, formou um tribunal religioso que permitiu, por unanimidade, o divórcio requerido. Em 1533, Ana Bolena era coroada rainha de Inglaterra. Tudo rolava sobre as regras da vontade do caprichoso Henrique.
Mais uma rapariga!
Oficializada a independência inglesa do papado, Ana trouxe ao mundo uma legítima criança, Isabel, que viria um dia a ser rainha, e que rainha! Nada que deixasse Henrique satisfeito. Dera-se a tantos sarilhos para ter um filho homem e saía-lhe mais uma petiza. Mais três ou quatro gravidezes perdidas provocaram o desinteresse crescente de Henrique por Ana. Esta já devia saber, por essa altura, de cor e salteado, como funcionava a cabeça do soberano, mas não foi suficientemente inteligente para seguir o percurso elegante da sua predecessora Catarina.
Quando Henrique começou a mostrar-se publicamente acompanhado pela nova conquista, Jane Seymour, Ana deixou-se dominar pelo monstro dos olhos verdes do ciúme, como lhe chamou Shakespeare, o autor que não tardaria a ser utilizado como arma política para a união dos povos britânicos, o primeiro verdadeiro historiador de Inglaterra, embora historiador mais romântico do que fiel. Henrique VIII já estava mais do que preparado para resolver o problema da sua segunda esposa. Acusou-a de adultério e de traição e fez-lhe rolar a cabeça no cadafalso sem que ela tivesse sequer tido tempo para se defender das blasfémias rapidamente espalhadas pelos labirintos da corte. O alegre viúvo casou menos de uma semana após a morte da consorte.
Jane Seymour tinha serpenteado, no verdadeiro sentido do termo, por entre as damas de companhia tanto de Catarina como de Ana. Sabia tudo sobre as más-línguas e como colocá-las ao seu serviço. Além disso, a sua mãe era prima direita da mãe de Maria e Ana Bolena, e as meninas tinham sido educadas juntas na infância, o que dá bem ideia do calibre da sua canalhice. Além disso, e o que verdadeiramente interessava, conseguiu, finalmente, ser mãe de um rapaz cujo pai era Henrique. A hierarquia estava assegurada. Jane é que não aguentou a violência do parto e morreu pouco depois. Henrique estava demasiado feliz com o jovem Eduardo (que viria a reinar muito brevemente como Eduardo VI) para se deixar abater pela morte da mulher. Mas ofereceu-lhe o reconhecimento eterno ao ordenar que viesse a ser enterrada a seu lado quando chegasse a hora.
Escolha à distância
Solto durante dois anos, Henrique foi empurrado para novo casamento, desta vez mais um casamento eminentemente político já que serviria para o aliar ao Duque de Cleves, um dos Estados do Sacro Império Romano. Puseram-lhe na frente o retrato das duas filhas solteiras do duque, Ana e Amélia, e depois de os observar atentamente, o rei optou por Ana, que lhe parecia mais bonita. Terrível engano! Quando desembarcou em Londres, no dia 1 de Janeiro de 1540, Ana de Cleves apresentou-se ao vivo em toda a sua feiúra. Para a História ficaria como The Ugly Queen. Henrique, sentindo-se enganado, explodiu de fúria. Quis recusar o enlace, mas as negociações estavam demasiado adiantadas. Cinco dias depois, havia uma nova rainha em Inglaterra e, seis meses mais tarde, já não havia outra vez: Ana aceitou uma muito razoável fortuna em troca do divórcio e de continuar a viver na corte inglesa com o estatuto de King’s Sister.
Umas atrás das outras
Ainda nesse ano de 1540, Henrique voltou a casar-se, desta vez com a lindíssima (para os seus parâmetros) Catarina Howard. Uma garota de apenas 19 anos, aia da sua ex-mulher Ana, que não tardou muito a traí-lo, como seria de esperar. Com a idade e o advento da hidropisia, Henrique deixara de ser um homem atraente e transformara-se numa figura monstruosa, gordíssimo e incapaz de se deslocar pelos próprios pés. «A rosa sem espinhos», como chamava à sua segunda Catarina, tornou-se um espinho cravado na sua garganta escondida pela pelagem do duplo queixo. Com o tempo veio a descobrir que Catarina não se limitava a traí-lo: era uma rapariga promíscua que conhecia o leito da maioria dos cavalheiros da sociedade londrina e muitos leitos de gente de sociedade nenhuma. Sem surpresa, foi julgada como adúltera e executada no dia 13 de Fevereiro de 1542. As mulheres de Henrique VIII pareciam volatilizar-se a uma velocidade arrepiante.
Uma vida de mulheres
A sexta e última esposa de Henrique VIII chamou-se igualmente Catarina (três em seis, média exata de 50%). Juntaram-se em núpcias no mês de Julho de 1543 e tudo parecia indicar que seria um casamento para a velhice, pois Catarina Parr chegara a uma fase da vida em que não estava disposta a cometer os mesmos erros das antecessoras. A sua influência benéfica sobre o feitio cada vez mais impenitente do monarca acabaria por influenciar a história de Inglaterra já que foi ela que o convenceu a incluir Maria e Isabel na ordem de sucessão ao trono.
Os boatos em relação às mulheres que visitavam os aposentos particulares de Henrique nunca pararam de rodar até ao dia em que ele parou de respirar. Às seis mulheres oficiais, houve que acrescentar amantes mais ou menos oficiosas, como Jane Popincourt, uma senhora francesa tutora das suas filhas, Margarida Shelton, prima direita de Maria e Ana Bolena, Ana Bassett, enteada do seu tio Artur Plantageneta, dama de companhia de várias das suas autênticas mulheres, Isabel Carew, a mulher de Nicholas Carew, um dos seus amigos mais íntimos, de intimidades pelos vistos partilhadas, e Ana Hastings, Condessa de Huntingdon e, para variar, desta vez prima do próprio rei.
Há também que considerar que, na sua maioria, as mulheres que casaram com Henrique VIII já tinham sido, antes das bodas, suas amantes, incluindo a primeira de todas, Catarina de Aragão, não tendo tido, nem um nem outro, algum pejo em traírem Artur, que começou por ser rei antes de Henrique. E não desprezar o facto de que todas elas, mesmo as que perderam literalmente a cabeça por ele, desfizeram-se em elogios em relação à forma carinhosa e preocupada como as tratava, a despeito dos seus ataques de fúria que se foram tornando mais frequentes à medida que o seu corpo se tornava obeso e a pressuposta beleza masculina desaparecia por detrás de bolhas de gordura. Às bolhas de sebo juntaram-se bolhas de pus que, quando rebentavam, o desfiguravam de forma cruel. Sofria dolorosamente de gota e deixou de se deslocar por completo quando as suas pernas incharam como bolas, ficando completamente inutilizadas. Em 1535 sofreu um corte na perna direita que nunca sarou. Os médicos tinham de lhe fazer purgas na zona rasgada com frequência. Por outro lado, e ao contrário de várias versões sobre o seu final de vida, parece nunca ter padecido de sífilis, boato muito provavelmente propagado pelos facto de ter usado e abusado de uma desregrada atividade sexual.
«King Henry VIII/To six wives he was wedded/One died, one survived/Two divorced, two beheaded», cantou-se pelo meio da populaça à medida que o tempo foi passando e a figura real se tornou personagem querida do folclore britânico. Outra cançoneta que se encaixou nos ouvidos da generalidade dos súbditos de suas majestades ia assim: «Boleyn and Howard lost their heads/Anne of Cleves he would not bed/Jane Seymour gave him a son –/ but died before the week was done/Aragon he did Divorce/Which just left Catherine Parr, of course!» Ou seja, as seis mulheres de Henrique VIII passaram a ser encaradas com um humor que as suas existências não refletiram. E Henrique, filho segundo, atrás de Artur (educado para rei), foi vítima, digamos assim, de uma preparação para a carreira religiosa. Talvez, como pretendem alguns historiadores, esse encerramento num mundo de padres, dedicando-se diariamente à teologia, às línguas, à pintura e à leitura teimosa dos salmos tenha provocado nele o desejo incontrolável de deixar tudo aquilo para trás de forma definitiva a partir do momento em que a a morte de Artur fez dele o rei.
Definitivamente, o seu primeiro casamento teve um peso muito grande na forma como passou a encarar a sua ligação com as mulheres. Catarina de Aragão, filha dos Reis Católicos de Espanha, e Artur, foram prometidos ainda na tenra infância como forma de reforçar a aliança anglo-espanhola contra os franceses. Tinham dois anos de idade quando os pais forjaram a união que poderia mudar a face política do mundo e casaram-se em Novembro de 1501. Artur morreu pouco depois de doença súbita e a sua viúva passou para as mãos do irmão Henrique, ato que dava uma ideia bastante clara como as mulheres da alta sociedade de então eram vistas, sobretudo, como moeda de troca para negociatas políticas.
Henrique VIII ocupou o trono com a idade de 17 anos e desposou Catarina três meses mais tarde. Nos 15 anos que se seguiram, Henrique entrou em três guerras no território francês e transformou a sua corte num lugar festivo e alegre, sempre animada por sessões de música e de poesia, por justas e caçadas. Com Catarina teve ses filhos, três rapazes e três raparigas, todos nados mortos ou morrendo com poucos dias de vida, excetuando Maria, mais tarde Maria I, a primeira mulher a subir ao trono de Inglaterra depois do breve reinado do seu meio-irmão Eduardo. Maria Tudor ocupou o trono durante cinco anos. Sucedeu-lhe a segunda rainha de Inglaterra, Isabel I. Até nisso, Henrique VIII foi um homem de mulheres…