Aviões que voam com elásticos. Ainda se lembra? Dois pedaços finos de madeira – um cortado de maneira a parecer uma fuselagem e o outro em forma de duas asas. As peças encaixavam e depois colávamos um conjunto de rodas finas à barriga do dispositivo improvisado. Com uma hélice de plástico colada ao nariz e um elástico enrolado até onde fosse possível, preso entre um ponto fixo na parte de trás e a hélice à frente, que quando se soltava fazia o avião voar e era a alegria de qualquer criança. O brinquedo voava por onde calhava e nós perseguíamo-lo despreocupadamente, começa por recordar Kevan Chandler, de 35 anos, numa espécie de ode à infância, na sua obra A amizade leva-nos mais longe.
Certo dia, o pai tirou-o da cadeira de rodas, pegou nele ao colo e a então criança percebeu que faria uma das coisas que mais desejara: pôr um avião a voar. Aos 35 anos, e a viver com uma doença neuromuscular rara desde que nasceu, Kevan acredita que ainda tem muito para fazer e, através da fundação da organização sem fins lucrativos We Carry Kevan, procura definir o conceito de acessibilidade. No verão de 2016, Kevan e os seus amigos fizeram uma viagem pela Europa. Deixando a sua cadeira de rodas em casa, foi carregado pelos seis companheiros, numa mochila especialmente projetada para ele, adaptada a partir de uma destinada a crianças. Décadas depois de lançar um avião com o pai e tê-lo visto voar com «força, livre», como explica no livro, também ele se tornou mais livre com a ajuda dos seis rapazes que o acompanharam. Dois anos depois, o mesmo grupo viajou até à China, visitando orfanatos. Num deles, Kevan conheceu a esposa Katie e, após manterem contacto durante um ano, começaram a namorar. O norte-americano sofre de uma doença genética que afeta as células nervosas da medula espinhal e o restante organismo – sendo altamente debilitante, está presente em aproximadamente 1 em cada 10 mil pessoas e é a principal causa genética de mortalidade infantil -, atrofia muscular espinhal, que se tornou conhecida, em Portugal, por meio do célebre caso da bebé Matilde. Há dois anos, gerou uma onda de solidariedade no país através da página do Facebook ‘Matilde, uma bebé especial’, sendo que os seus pais angariaram 2 milhões e 30 mil euros em duas semanas. O objetivo passava pela necessidade de ter acesso ao Zolgensma, um medicamento inovador que trata a doença. O fármaco não estava disponível em Portugal, mas, volvidos dois anos, seis crianças, entre os três e seis anos de idade, diagnosticadas com Atrofia Muscular Espinhal Tipo 1, vão receber o Zolgensma, mais conhecido como o «remédio da Matilde», pois as autoridades de saúde emitiram uma autorização especial (Programa de Acesso Precoce [PAP] a medicamento) para que o fármaco pudesse ser administrado.
«O preço deste medicamento está a ser negociado», disse fonte da Autoridade Nacional do Medicamento e Produtos de Saúde (Infarmed) ao Jornal de Notícias esta semana. É de frisar que cada medicamento, de toma única, tem o custo aproximado de 700 mil euros. Ao longo de 24 meses, o Estado português contribuiu com 4,1 milhões de euros para os tratamentos com o fármaco. Existem vários tipos da doença mas, no geral, os sintomas passam por ter dificuldade para segurar a cabeça ou para ficar sentado sem apoio, tal como para respirar e engolir, conduzindo a que atividades como subir ou descer escadas sejam árduas de realizar. Kevan não se sente confortável para falar de medicamentos ou de genética, mas garante que se pode ter uma «vida plena e maravilhosa» mesmo enfrentando uma patologia e ambiciona transmitir essa mensagem a todos aqueles que dela precisem.
Nasceu no estado da Carolina do Norte. Como foi a sua infância?
Foi maravilhosa! Cresci com dois irmãos mais velhos e uma mãe e um pai incríveis. O meu pai era mecânico de aviões e a minha mãe trabalhava com mulheres que estavam grávidas e precisavam de ajuda, então, eram muito criativos e tinham grandes corações. Ensinaram-nos a viver a vida ao máximo e a amar as pessoas. Era uma boa casa para crescer.
Foi a segunda pessoa da sua família a ser diagnosticada com atrofia muscular espinhal.
Exato, a minha irmã Connie tem a mesma doença. Na verdade, ajudou-nos a crescermos juntos, a saber que não estávamos sozinhos e que havia sempre alguém que entendia aquilo que estávamos a vivenciar. Mas o nosso irmão e os nossos pais eram muito bons naquilo que dizia respeito a envolver-nos no mundo das pessoas fisicamente aptas.
Quando é que percebeu as ‘limitações’ que tinha e como decidiu que as mesmas não o impediriam de realizar os seus sonhos?
Estive sempre ciente das minhas limitações, mas de uma forma saudável, e não permiti que me parassem. Os meus pais foram realmente ótimos ao ajudar-me a descobrir aquilo que poderia ou não fazer e também a perceber como faria as coisas que eu queria fazer, mesmo que estivessem inseridas na categoria de «coisas que eu não poderia fazer»! Será que isto faz sentido?
Tirou a licenciatura em Counseling [Aconselhamento] na Universidade John Wesley. Seguiu este percurso académico porque ambicionava ajudar quem o rodeava?
Sim! O meu objetivo era ser um conselheiro nas prisões, para ajudar os presos a prepararem-se para quando fossem libertados. Fiz isso por um tempo, aquelas portas fecharam-se e outras acabaram por ser abertas.
A instituição que frequentou é a de ensino teológico mais antiga da Carolina do Norte. Que impacto tem a religião na sua vida?
É definitivamente importante para mim. Posso até dizer que é o mais importante porque não sei onde estaria sem a minha esperança em Jesus. Experienciei os altos e baixos da vida e Ele tem sido fiel e bom em cada momento.
Acha que o mundo seria melhor se mais pessoas seguissem uma crença religiosa ou, por outro lado, acredita que o bem não está ligado apenas à religião?
A meu ver, Jesus morreu para salvar o mundo, então, acredito que o mesmo seria um lugar melhor se O seguíssemos e nos submetêssemos a Ele como o Bom Rei que Ele é. Até que isso aconteça, algum bem pode ser feito, é claro, mas a humanidade continuará a tentar fazer do mundo um lugar melhor sem Jesus e esses esforços continuarão a fracassar até certo ponto. Ele é o único que pode consertar tudo de novo.
Que papel desempenha na Aliança Cristã para Órfãos [Christian Alliance for Orphans]?
Tenho a honra de partilhar um pouco da minha história, este ano, na cimeira da CAFO. A minha esposa já esteve presente antes, mas esta será a minha primeira vez. Aprecio que o foco deles seja reunir ministérios e organizações de todo o mundo e ajudá-los a trabalhar juntos neste campo especializado de assistência a órfãos. Embora este não seja o nosso foco principal na We Carry Kevan, o nosso trabalho certamente se estende aos cuidados de que os órfãos necessitam, por isso, estamos felizes por estar ao lado de grupos como a CAFO para aprender e dividir recursos. Trabalhamos com algumas organizações cristãs, bem como serviços públicos, farmacêuticos e outras empresas e organizações sem fins lucrativos que não são necessariamente rotuladas como cristãs.
No ensino Secundário, assim como no Superior, tocou harmónica e cantou numa banda punk acústica cujo nome era Fluffy Road-kill. A música, a fé, a escrita e as viagens são as suas maiores paixões?
Diria que são contar histórias e o companheirismo. O evangelho é a maior história já contada e reflete-se em todas as outras grandes histórias. E posso narrar a minha história, envolvendo a minha fé, amigos, família, aventuras ao redor do mundo e em casa. E adoro partilhar essas histórias através da música e da escrita. Portanto, adoro reunir pessoas, viajar com elas e transmitir essas histórias de maneira a que glorifiquem Deus.
Foram esses os motivos pelos quais publicou We Carry Kevan:Six Friends, Three Countries, No Wheelchair [A amizade leva-nos mais longe, editado pela Casa das Letras em Portugal] em 2019?
Que bom que o meu livro já está disponível em Portugal! Sempre adorei escrever, desde pequeno. A minha irmã e eu inventávamos histórias quando éramos crianças. No ensino secundário e na faculdade, toquei na banda e também escrevia as letras das músicas. Desde que me lembro, tenho uma imaginação louca, como se fosse uma televisão no fundo da minha mente e no meu dia-a-dia! Recordo-me de que, depois da faculdade, li um romance que mudou tudo. Algo nele me estimulou a colocar a minha imaginação no papel. Então, passei os meus 20’s a publicar um punhado de livros que estava a escrever, basicamente, apenas para aprimorar o ofício. Em 2016, fizemos a nossa viagem pela Europa e eu soube que tinha uma história para contar e, por isso, continuei!
Entre esse ano e 2018, deixou a sua cadeira de rodas para trás e os seus amigos transportaram-no pela Europa e pela China. Como tudo correu?
Foi incrível! Gostei de ver como podíamos cuidar uns dos outros e usufruir do mundo juntos em proporções tão épicas!
Quais são as melhores memórias que tem?
Cada lugar e cada experiência foram especiais para mim de uma maneira única. Então, eu não sei se poderia escolher um ‘melhor’ ou ‘favorito’, mas adoraria que as pessoas lessem o livro e decidissem quais são as suas partes prediletas! Há muito para escolherem e, espero, com que se identificarem.
Como se deu a criação da mochila em que foi transportado?
Parece que foi um processo de tentativa e erro até que encontrou uma solução adequada. Trabalhámos com uma empresa chamada Deuter que foi muito prestável, mas ainda demorou cerca de quatro meses para testar, regressar aos desenhos do protótipo e executar mais uma ronda de testes até que tivéssemos aquilo que queríamos. Na verdade, trabalhámos mais com a Deuter depois da viagem à Europa e agora estamos a preparar uma terceira versão da mochila.
Sentiu-se discriminado ou alvo de olhares menos agradáveis?
Não muito, mas menciono algumas situações no livro. Principalmente, pessoas que apenas não entendiam e, muito raramente, alguém foi cruel. Mas acho que ajuda que estas viagens sejam feitas em grupo, pois ficámos juntos e encarámos a nossa situação com normalidade. Isso é contagiante, digamos assim. A nossa equipa entra numa sala, por exemplo, e somos definitivamente uma visão estranha de se ter: eu sou carregado nas costas de alguém, mas nenhum de nós acha isso estranho e não agimos como se fosse estranho, por isso, rapidamente, todos os outros adotam os nossos sentimentos e, de repente, somos considerados muito normais. É uma das muitas razões pelas quais adoro viajar com os meus amigos: há uma reviravolta positiva na mob mentality [quando as pessoas ajustam as suas visões pessoais para se integrarem em determinado grupo].
A Deuter fabrica a Kid Comfort 3, a mochila/suporte para crianças, que adaptaram para adultos que tenham um peso igual ou inferior a aproximadamente 31 quilos. Como se sentiu quando viu o protótipo?
Realizado e sabia que era apenas o início!
Voltou para casa e fundou a We Carry Kevan porque percebeu que a mochila podia ajudar outras pessoas. Até agora, quais são os maiores objetivos que alcançou?
Eu diria que a maior meta mensurável que alcançámos foi levar mochilas a famílias, que tinham algum elemento com deficiência, por todo o mundo. Nos últimos dois anos, conseguimos distribuir mais de 500 mochilas em mais de 22 países e esse número continua a crescer a cada dia. Mas as conquistas menos mensuráveis podem ser ainda mais importantes. O nosso desejo como organização sem fins lucrativos é mobilizar as pessoas com deficiência por meio da inovação e tornar o mundo num lugar mais acessível, não apenas adicionando rampas e elevadores em todos os lugares, mas também construindo uma comunidade e mudando corações. Acredito que quem tem uma limitação precisa de pessoas, não apenas para ir à casa de banho ou subir as escadas, mas para crescer e florescer como ser humano. Fomos criados para a comunhão e as nossas almas anseiam por essa interação entre Deus e uns com os outros, onde nos tornamos mais ricos e mais reais do que jamais poderíamos ser por conta própria. Portanto, o meu desejo é reunir as pessoas, começando por mim mesmo, estendendo a mão às famílias que têm as nossas mochilas e exemplificar a amizade, fazendo com que essas pessoas se sintam vistas, conhecidas e amadas porque julgo que é assim que a mudança de atitude [tradução da expressão anglo-saxónica change of heart] acontece. Como uma organização sem fins lucrativos, não damos somente mochilas às pessoas, mas construímos amizades com elas e fomentamos a união da comunidade para que haja uma acessibilidade mais profunda e sustentável.
A ideia é disponibilizar a mochila por um preço acessível ou dá-la de graça?
Correto. O custo para comprar a mochila é comparável ao de um carrinho de transporte infantil comum, de forma a que famílias com elementos com deficiência não sejam enganadas apenas porque precisam de um dispositivo especial. Também oferecemos bolsas de estudo a famílias que não têm meios financeiros para suportar a educação.
Em 2018, na China, visitou, com os seus amigos, orfanatos administrados pela New Hope, uma organização que abriga órfãos com deficiência. Juntamente com a Deuter, doou mochilas às crianças que delas precisavam.
A New Hope é uma organização verdadeiramente incrível e adoramos o trabalho que estavam a fazer – e continuam a fazer! -, por isso, queríamos levar algumas mochilas connosco, para o caso de serem úteis para os funcionários e as crianças. A Deuter foi muito gentil ao doar algumas e foi uma alegria ver as crianças a usarem-nas. Conseguimos ver os benefícios da mochila para algumas das crianças, pois mantivemos contacto com a equipa, sendo que as ajudou a desenvolver força muscular e equilíbrio e também lhes deu ânimo enquanto brincavam aos ombros dos seus cuidadores.
Foi aí que entendeu que poderia mudar o mundo daqueles que têm dificuldades motoras?
Não sei se posso necessariamente mudar o mundo de alguém, mas estou animado por ter uma voz e um ‘palco’ para partilhar a minha história e algumas ferramentas para acompanhá-la que podem ajudar algumas pessoas.
Também foi na China que conheceu a sua esposa Katie. Sim, num centro onde eram prestados cuidados a órfãos com deficiência, pois ela estava a ajudar os cuidadores.
Ficámos amigos, mantivemos contacto e, cerca de um ano depois, começámos a namorar. Quando nos conhecemos, eu sabia que nunca tinha conhecido ninguém como ela. Ela era tão maravilhosa e especial e a forma como ela amava as pessoas simplesmente surpreendeu-me. E foi nesse ano de contacto que percebi que queria passar o resto da minha vida com ela, por todos esses motivos e muitos mais. Ela ensinou-me muito sobre bondade e graça, sobre estar presente para as pessoas e vê-las com um tipo totalmente novo de profundidade que eu nunca conheci antes. Ela também é minha testemunha, uma observadora constante e participante da minha vida, e isso ajuda-me a crescer como pessoa com responsabilidade e auxílio.
Em retrospetiva, a maneira como lida com a doença mudou nas viagens que tem feito?
Sempre fui aberto e de espírito livre em relação àquilo que posso ou não posso fazer como falámos anteriormente. Não há muita coisa que me desanime e adoro trabalhar com os meus amigos para vencer as adversidades e fazer o impossível. Acho que essas duas viagens ajudaram-me a levar essa mentalidade a um novo nível, abrindo e alargando a minha imaginação a novos patamares e expandindo a minha perspetiva para dizer ainda mais livremente ‘Podemos resolver isto’.
O Governo tem apoiado a We Carry Kevan?
A maior parte do nosso apoio, até agora, veio de doadores privados, palestras, vendas de livros e alguns subsídios farmacêuticos.
O que podia ser feito em termos políticos para ajudar quem sofre de atrofia muscular espinhal?
Gosto mais de olhar para o nível pessoal desse tipo de questão. Como podemos ajudar os nossos vizinhos e amigos? Acho que as pessoas com deficiência, como eu, precisam de convidar as pessoas para as suas vidas e casas, não apenas para pedir ajuda, mas para que exista uma amizade. E aqueles que são fisicamente aptos devem procurar e aceitar esses convites para fazer parte da vida de outras pessoas. Talvez até eles mesmos façam esse convite porque, afinal das contas, todos temos necessidades, não temos?
Pensa visitar outros países em breve?
A nossa grande aventura agora envolve viagens, mas parece diferente. Atualmente, estamos a visitar famílias que possuem a nossa mochila, para passar tempo de qualidade com as mesmas e incentivá-las. Isso leva-nos a todos os cantos dos EUA e, eventualmente, a todo o mundo. Quanto à nossa próxima viagem de mochila como uma equipa, falámos sobre Israel. Também conversámos muito sobre ir à Argentina, onde o meu tataravô foi um missionário no final de 1800. Mas essas duas viagens e outras não serão em breve. Estamos a concentrar-nos em desenvolver amizade com as pessoas que apoiamos.
Qual é o seu maior sonho?
Em última análise, quero que as pessoas experimentem as verdadeiras liberdade, paz e felicidade. Essas coisas são encontradas no relacionamento profundo com Jesus e na amizade genuína com outras pessoas. O meu maior sonho é exemplificar essa verdade com a minha história e clarificar a possibilidade de ter uma vida plena e maravilhosa.