Han van Meegeren. O falsificador que engazopava nazis

Levado a tribunal sob a acusação de colaborar com os ocupantes alemães da Holanda, a sua defesa foi surpreendente: os quadros vendidos a altas figuras do Reich eram forjados por si. Ou seja, vendia, isso sim, falsificações por largas somas, o que fez com que o caso caísse por terra.

A Sala 4 do Tibunal Regional de Amesterdão estava à pinha. Decorria o dia 29 de Outubro de 1945 e Henricus Antonius van Meegeren, o falsário mais famoso da época, estava metido numa camisa de onze varas. Quem prestasse atenção ao réu, não adivinharia a sua situação periclitante. Sereno, com o seu ar de dândi, ‘Han’, como era conhecido, exibia um esgar escarninho à media que escutava os testemunhos. Tinha 58 anos e não lhe restava muito tempo de vida, ainda que ninguém fosse capaz de adivinhá-lo. A gravíssima acusação de colaboração com o regime nazi caiu por terra quando se percebeu que todos os quadros que tinha vendido às maiores patentes do III Reich, com Göring à cabeça, não eram obras dos grandes pintores flamengos mas apenas cópias perfeitas pintadas por ele próprio. O procurador H. A. Wassenbergh lançou-se como uma fera sobre van Meegeren, exigindo dois anos de prisão para o homem que vendera ao Reichsmarschall Hermann Göring um valiosíssimo quadro de Johannes Vermeer, o Vermeer de Delft (cidade onde passou toda a sua vida), considerado pelos grandes especialistas como o mais famoso pintor holandês do século XVII, período que ficou conhecido como a Idade de Ouro da Holanda.

Tinha sido preciso recuar até 1942 para lançar as bases do processo contra Han. Descobriu-se que, durante a ocupação nazi da Holanda, muitos quadros importantes tinham mudado de mão. O primeiro deles foi Cristo e a Adúltera, negociado por um agente de van Meegeren e um banqueiro e coleccionador de arte alemão chamado Alois Miedl. A pintura era quase perfeita e assinada por Vermeer, mas fora forjada muito tempo depois da morte do pintor, precisamente por Hans. Quase perfeita porque a perícia de van Meegeren para falsificar as obras de pintores como Frans Hals, Pieter de Hooch, Gerard ter Borch e Johannes Vermeer decaíra de forma evidente desde que mergulhara no vício do álcool e da morfina. Fosse como fosse, não havia outros quadros de Vermeer disponíveis para que os especialistas pudessem proceder a uma comparação minuciosa – todos tinham sido sujeitos a uma protecção total para evitar que fossem danificados durante o conflito.

Hermann Göring, provavelmente o maior ladrão de arte de todos os nazis no poder, não aceitou de bom grado que Mield estivesse na posse de Cristo e a Adúltera. Fez-lhe uma daquelas propostas que Mield não podia recusar. Aliás, qualquer proposta de Göring não era recusável. E assim se realizou o negócio: o quadro de Vermeer contra 137 peças de arte roubadas um pouco por toda a parte nos grandes museus da Europa ocupada. Feliz da vida, o Reichsmarschall decorou uma parede da sua mansão de Carinhall, a cerca de 60 km a norte de Berlim, com o Cristo e a Adúltera. Exibia-o com orgulho às suas visitas na plena ignorância que o quadro fora forjado por van Meegeren. Quando o vento da guerra mudou e começou a soprar contra a Alemanha, o falso Vermeer foi escondido juntamente com mais 6.750 peças de arte pilhadas no fundo de uma mina de sal em território austríaco.

O falsificador

Henricus Antonius nasceu em Deventer no dia 10 de Outubro de 1889. Desde muito miúdo que desenvolveu um fascínio incontrolável pelas obras dos pintores da Idade do Ouro e decidiu seguir a carreira de artista. O seu espírito orgulhoso, pleno de vaidade, não suportou as primeiras críticas negativas ao seu trabalho. Muitas delas provocadas por antipatia pessoal assente na personagem excêntrica que van Meegeren adoptou para si próprio, embrulhando-se em fatos caros e vistosos e casacos excessivamente estranhos, ao mesmo tempo que deixava crescer um bigodinho provocante e se pavoneava com tiques de estrangeirismo que absorveu depois de ter vivido uns tempos no sul de França. Os seus compatriotas embirravam com ele e predispuseram-se a desprezá-lo. A ele e à sua obra. Foi esse o momento em que um sonoro ‘CLIC’ rebentou na sua cabeça onde morava uma inteligência revoltada e intrincada. Han teve a ideia, provavelmente genial, de nunca mais ver um quadro seu despreciado. E a melhor forma de o conseguir era pintando quadros dos outros como se fossem seus. A Ceia em Emaús, de Vermeer, brotou-lhe dos dedos mágicos como se fosse o próprio Vermeer a desenhá-la. Todos os grandes especialistas em Vermeer, incluindo o dr. Abraham Bredius, uma sumidade desse tempo, não tiveram dúvidas em considerar o quadro autêntico. Chegara o momento da vingança de van Meegeren.

É preciso dizer que Han se esforçou bravamente para erguer a sua carreira. Em Sheveningen, para onde a família se mudara em 1914, pintou dezenas e dezenas de quadros, aperfeiçoando a sua técnica e tornando-se um artistas bastante razoável mas totalmente votado ao desprezo dos seus contemporâneos. Entre abril e maio de 1917, fez a primeira exibição pública das suas obras, em Haia, na Kunstzaal Pictura, e não tardou a ser aceite no restrito clube de Haagse Kunstkring, uma selecta sociedade de artistas de diversos campos que se reunia semanalmente para debater as correntes artísticas em voga. Vivia o momento mais agradável da sua vida de pintor, ganhou fama de retratista e viajou por vários países da Europa para eternizar as imagens dos nobres das diferentes cortes. Além do mais era bem pago, o que lhe dava uma existência desafogada com laivos de verdadeira riqueza.

«Estamos perante um momento magnífico para os amantes da arte! Quando um especialista com muitos anos de experiência se depara com uma obra prima, intocada, encaixada na sua tela original e sem a mínima demonstração de haver ter sido tocada – até os pormenores do pão manuseado por Cristo desfazem qualquer dúvida que nos possa surgir pelo caminho – tenho de sublinhar que este trabalho de Hohannes Vermeer de Delft é diferente de todos os outros, mas sem a mínima dúvida que cada milímetro dele foi pintado pelo enorme mestre»: eis a declaração do dr. Bredius quando o puseram frente a frente com a falsificação feira por Han.

Este já tinha, pelo caminho, conquistado o seu próprio e ainda que pequeno espaço. Hertjes (o Veado) terá sido a sua obra mais conhecida, desenhada de propósito para oferecer à princesa Juliana, da Holanda. Mas a verdade é que van Meegeren não se satisfazia com tão pouco. O seu desejo era ser reconhecido como o melhor dos melhores. Mesmo que para isso precisasse de esconder o seu autêntico nome.

A prisão!

Em Maio de 1945, a polícia invadiu o palacete de Han van Meegeren e levou-o para o cárcere sob a acusação de ter colaborado com os nazis durante a ocupação. Acusação suficientemente grave para lhe garantir uns anos de cadeia efectiva, se não mesmo uma sentença de morte por enforcamento, muito vulgares à época.

O principal esteio da acusação estava alicerçado no facto de ter sido encontrado por entre os despojos de Göring um Vermeer intitulado A Mulher Apanhada em Adultério que só podia ter-lhe sido vendido por Han, segundo o procurador. Surpreendentemente, van Meegeren lançou em sua defesa um argumento formidável e radical. AMulher Apanhada em Adultério não era, nem nunca fora, pintada pelo mestre Vermeer. Limitava-se a ser uma cópia rabiscada pelo próprio Meegeren. Além disso, fora vendida a Göring em troca de 200 quadros originais de pintores holandeses, o que comprovava não apenas o patriotismo de Hans como a sua vontade de engazopar nazis, impingindo-lhes falsificações. Ao contrário de um colaborador, fora um patriota. Confessou, igualmente, que duplicara cinco outros Vermeers e dois Peter de Hoochs, obras que mexeram com o mercado internacional.

O julgamento de Henricus Antonius quase se transformou num circo quando este ergueu a voz, obrigando ao silêncio de todos os presentes, e declarou que pintaria, ali mesmo, na sala de audiências, uma cópia de um quadro de Vermeer que nenhum especialista seria capaz de negar a autoria do mestre de Delft: Jesus Entre os Médicos. Usaria a técnica e os produtos que utilizara naas anteriores falsificações e desafiava os jurados e o juiz a encontrarem algum sapiente da obra de Vermeer a apontar as diferenças entre os quadros. Até aí, o maior dos problemas de Hans foi o de manter o seu trabalho completamente incógnito o que o impedia até de contratar modelos que o auxiliassem nas falsifiações. Quando resolveu, por exemplo, copiar a Última Ceia, de Vermeer, viu-se na contingência de usar como modelo a figura de A Rapariga do Brinco de Pérola do mesmíssimo Vermeer. Ou seja, atingira o ponto mais alto da arte da falsificação, trazendo para os quadros que copiava elementos de outros quadros dos mesmos pintores.

Uma questão de técnica

Outro grande problema de Han era o de descobrir a forma de transformar um quadro recentemente pintado num que parecesse realmente antigo. A solução para tal descoberta fez dele um artista noutro campo. The Forger’s Spell é um livro escrito por Edward Dolnick que tentou ir ao fundo da vida e da psique de van Meegeren. A certo ponto refere: «A questão de Han era a de atingir o topo dos topos. Queria ser como um Rolls-Royce e, para isso, tinha de estar ao nível dos maiores mestres da pintura. Se alguém queria sobreviver nesse mundo, nada como pintar como Vermeer. Ou como copiar Vermeer. E ele apostou nisso a sua existência».

Até ao fim

No dia 14 de Novembro de 1947, o Tribunal Regional de Amesterdão sentenciou Han a um ano de prisão por falsificação e fraude. O juiz reuniu um grupo internacional de especialistas em pintura para estudarem o trabalho de van Meegeren e compararem as suas cópias com os quadros de Vermeer. A comissão foi formada por técnicos holandeses, belgas e ingleses, e encabeçada pelo director do laboratório do Museu Real das Artes de Bruxelas, Paul B. Coremans. Foi ele que chegou à conclusão de que tipo de elementos químicos Han utilizava para transformar quadros recentes em obras antigas. A base dessa falsificação assentava em fenolfermodeído de resina misturado com baquelite e com albertol. Aliás, uma garrafa com esta mistura foi encontrada no estúdio de Meergeren, o que ajudou muito na tomada de posição do juiz responsável pelo caso.

O julgamento de Hans foi, nesse aspecto, absolutamente revolucionário. Nunca uma investigação mergulhara tão profundamente no caminho das provas químicas que acabaram por absolver Meergeren da acusação de colaborador com as grandes personagem do nazismo, passando a ser apenas sujeito à sentença por falsificação. No fundo, como diz o povo de forma inversa, passou do fogo para a frigideira, salvando-se da muito provável pena de morte.

Quando regressou a casa, no 321 da Keizersgracht, à espera de ser encarcerado, Han viu a sua saúde completamente abalada. Fôra excessivamente pressionado durante meses a fio e a sua personalidade frágil estremeceu de alto abaixo, abalando os alicerces da sua estrutura. Mentalmente caiu num poço sem fundo. Vagueva pela vizinhança vestido como um maltrapilho e sem destino, bêbado como um cacho. No dia 26 de Novembro sofreu um ataque cardíaco. Dia exacto em que o seu recurso foi apresentado à Justiça. Setenta e duas horas mais tarde, internado no hospital, sofreu novo abalo no seu coração que parecia ter a espessura de papel vegetal. Às cinco horas da manhã do dia 30, foi declarado morto. Tinha 58 anos. Um grupo enorme de amigos e parentes juntaram-se no Driehuis Westerveld Crematorium, onde foi transformado em cinzas. Depois da sua morte, a sua bancarrota foi legalmente registada. Curiosamente, várias das suas falsificações atingiram valores extraordinários, tal como A Última Ceia que atingiu o preço de 3000 guilders, qualquer coisa como sete mil euros de hoje em dia. Extraordinários pelo facto de não passarem de falsificações, como está bem de ver.

Passaram-se vinte anos. Em 1967, na Artists Material Center at Carnegie Mellon University, em Pittsburgh, Estados Unidos, Robert Feller e Bernard Keisch confirmaram que diversos quadros atribuídos a Vermeer demonstravam terem substâncias só descobertas no século XX. Algo que gerou de novo desconfiança sobre a sua autenticidade. Ou seja, podiam ser cópias feitas por van Meegeren. A maior vitória da vida de Han, certamente – a realidade de que os quadros do maior mestre da Idade de Ouro da Holanda podiam ser dele ou de Vermeer. Algo que fazia Hans entrar pelo portão maior dos pintores de sempre. Embora por vias travessas…