por Sofia Aureliano
Um partido político é mais do que o seu líder. É uma instituição com uma história, um fundamento, um propósito que devem ser maiores e superiores do que a pessoa que o lidera, a cada momento.
A fulanização dos partidos é um fenómeno a que temos assistido com regularidade como uma tendência transversal a todas as ideologias políticas, mas que é profundamente nefasta para a esfera política. Desencadeia crises de sucessão, vazios de identidade, contrassensos e põe em sério risco a sustentabilidade dos partidos enquanto instituições, somas maiores do que as partes.
Não quer isto dizer que os líderes partidários não tenham um peso e não possam marcar uma era com o seu cunho pessoal. Naturalmente que o fazem e a forma como lideram pode fazer a diferença. Como dizia Mandela, “há diversos padrões por onde avaliar a importância de uma organização. Um dos mais importantes é o calibre da sua liderança”.
Mas é redutor ver a instituição como espelho refletor do pensamento do líder. Isto porque o líder não o seria se a sua persona política não coubesse dentro das fronteiras ideológicas do partido que representa e se desviasse do alinhamento da sua base eleitoral.
Há uma margem de manobra para exercer o poder, diretamente associada ao caráter e à personalidade do líder. É por isso que se fala em correntes como Soaristas ou Socráticos, Cavaquistas ou Passistas. São os seguidores de uma determinada forma de fazer política, mas que não podem, na sua essência, desvirtuar da origem, dos princípios básicos e fundadores do pensamento partidário. Da perceção desta relação resultam o endeusamento do líder ou a sua bestificação, que o tempo por vezes dita como prematura e injusta.
Os meios de comunicação são, em grande medida, responsáveis pela disseminação deste fenómeno de fulanização, pelo simples facto de espelharem intensamente a sua existência. Na verdade, mesmo que não façam mais do que dar palco à mensagem que lhes é transmitida, estão a recorrer no erro de reduzir as estruturas de pensamento a visões egocêntricas e individualizadas de uma pessoa e de um grupo restrito que lhe está associado e é dela totalmente dependente, alimentando um ecossistema particular ao gravitar à sua volta.
Quando se fala do partido de X e do partido de Y como sendo correntes opostas e que defendem posições diferentes, às vezes até contraditórias, ignora-se que se está a falar sempre da mesma instituição, em momentos diferentes da sua história. O protagonismo que é dado ao líder acaba por estrangular a instituição, fomentando uma visão míope do que deve ser um partido e a defesa de uma ideologia.
Porque é que isto acontece? Por preguiça e motivações financeiras. Porque, como qualquer enredo de novela, gera muito mais interesse popular e comercial discutir miudezas e guerrilhas, explorar questiúnculas e pegadilhas polémicas que envolvam este ou aquele indivíduo, do que traduzir debates sérios ou mergulhar em reflexões profundas. É mais fácil, mas é menos honesto. E mais uma vez traduz um desaproveitamento do potencial poder dos meios que, ao se regerem pela bitola do poucochinho, demitem-se do dever de educar, informar e aprofundar. Deviam ser mais responsáveis, mais exigentes, menos facilitistas, fazendo jus ao poder que têm.
Se os partidos não forem além da empatia e credibilidade do líder, não têm futuro. Da mesma maneira, se um líder não corresponder às expectativas do seu eleitorado, será sucedido por outro que o faça, iniciando uma nova era. Muda o momento da história da instituição, mas a instituição continua.
Por isso, será sempre derrotista, ingénuo e tacanho pensar que não há senhoras ou senhores que se seguem. Obviamente que há. Sempre. O poder nunca é um descampado desocupado. Só não estão em evidência porque não chegou o seu momento na história do partido. O palco agora é de outros e cada líder merece respeito e espaço para exercer o seu tempo, sem atropelos, para que possa colher desse período as boas ou más consequências. Tal como numa empresa, o diretor geral é responsável pelo rumo do coletivo durante um período. Terminado o contrato, é sucedido no cargo sem que se pense que a empresa tem de fechar portas.
Ainda que seja um facto insofismável, alguns líderes, de egos porventura mais espaçosos, tendem a esquecer-se de que o seu estilo é livre, pessoal e intransmissível, mas o seu papel principal é condicionado. No tempo e no espaço, nas matérias e no raio de ação. Se há coisa que a história já demonstrou é que não há insubstituíveis. E se houver é porque estamos perante outra figura que não o de instituição partidária. Eventualmente, uma ideia ou um movimento.
Veja-se o caso da sobejamente recorrente dúvida sobre “o que será o Chega sem ou depois de Ventura?”. Se o Chega não sobreviver a Ventura – há lideranças muito longas, mas não há lideranças eternas -, o Chega não é um partido político. É um coletivo de vontades a sofrer os efeitos nefastos da sua excessiva fulanização, ferido com gravidade e provavelmente condenado à morte.
Serve isto como convite para “supra-pensar”. É uma prova de inteligência conseguir vislumbrar a verdade, para além do que nos é facultado. Na véspera das eleições mais fulanizadas de todas, não nos devemos deter em manchetes que antecipam crises pós-eleitorais, ou preveem facadas nas costas como vias rápidas de acesso ao poder. Para além de ser perda de tempo, é ingenuidade.
O mundo pode ser mais dos espertos, mas as regras do jogo estão definidas e são conhecidas por todos os jogadores. Vão aplicar-se sempre, mesmo que alguns tenham mau perder.
A dias de ir às urnas fico feliz por ter como horizonte a floresta e por saber que, conscientemente, sou muito mais do que seguidora de a, b ou c. Acima (e apesar) de tudo, serei sempre pela social democracia. Com a noção de que independentemente de os líderes chegarem ao fim do seu tempo, o partido permanece, na sua essência, igual a si mesmo, na defesa daquele que considera ser o melhor projeto para o futuro.