por Mário Crespo
Há 20 anos, ao princípio da tarde em Lisboa, tal como centenas de outros jornalistas, corri para a minha Redação quando soube dos ataques terroristas da Al Qaeda. Trabalhei no estúdio da SIC buscando algum sentido no horror incompreensível. Desfilaram em diretos incessantes personalidades e peritos que o Paulo Camacho e eu entrevistámos enquanto lançávamos as imagens que nos chegavam dos Estados Unidos. Soube muito mais tarde que estavam a ser enviadas para o mundo pela antena no topo do World Trade Center de Nova Iorque, que se manteve em funcionamento até a Torre Norte se desmoronar. O que resta dessa antena está hoje no espólio do museu de jornalismo em Washington. Enquanto se desenrolava história contemporânea à nossa frente, António Guterres, fez um primeiro comentário dizendo: «Acontecimentos destes […]». Logo que terminou o direto de São Bento fui duro na crítica. Nunca tinha havido acontecimento como aquele. No comunicado que Jorge Sampaio leu de Belém disse: «Os Estados Unidos foram atacados […]». Também ele não tinha entendido que naquele dia não tinham sido só os Estados Unidos a ser atacados. Tinha sido a civilização humana. Fui para casa. Nessa noite escrevi o que senti a 11 de Setembro de 2011. Que tinha ido pela primeira vez a Nova Iorque em 1980. Tinha 30 anos, e desde o 25 de Abril, com o fim da guerra colonial, que nomadizava um pouco por todo o lado em busca de um oásis. Nova Iorque era parte do meu imaginário. Dos livros em quadradinhos, dos filmes e da TV tinha construído imagens de familiaridade nítidas, a um ponto tal que me senti logo em casa. Julgo que este sentimento é comum a todos os que visitam a cidade. A ida ao World Trade Center, na altura o prédio mais alto do mundo, era uma obrigação. E eu cumpri-a com o entusiasmo de um peregrino. O gigantismo de tudo nas Torres Gémeas era inebriante. Dobrei a espinha vezes sem conta tentado a ver lá debaixo os 107 andares que nunca se conseguiam abranger de um só relance. Deixei-me maravilhar pelo minimalismo limpo das formas retilíneas que acompanhavam os dois colossos desde a base até ao topo. Tudo me encantou no desenho minucioso de Minoru Yamasaki, que deu às Torres Gémeas todo o engenho da sua maneira de estar na arte da arquitetura, definindo com elas uma corrente ainda hoje conhecida como o Neo Formalismo, pela surpreendente pureza e sobriedade de conceitos. Foi assim que a obra maior de Yamasaki se foi definindo em dois paralelepípedos quadrangulares contidos por retas de alumínio encaixilhando painéis de vidro fumado que se projetavam a meio quilómetro de altitude. O único acidente na integridade destas linhas paralelas aparecia no topo, quando elas se uniam aos pares em elegantes arcos em ogiva que coroavam as estruturas.
O filósofo britânico Jacob Bronowsky considerava a descoberta arquitetónica do arco como determinante na evolução do espírito ocidental. As ogivas permitiram fazer vãos muito mais amplos. Abrindo vistas, rasgando imensas janelas para o exterior, em paredes de casas até ali confinadas à prisão das vigas simples que limitavam as ideias aos corredores escuros do pensamento sem horizontes.
As ogivas no topo das Torres Gémeas eram góticas, transportando toda a solenidade das grandes catedrais europeias para os colossais monumentos à pujança do Novo Mundo no setor financeiro de Nova Iorque.
Entrava-se por átrios imensos onde baterias de elevadores nos convidavam a desafiar a gravidade, disparando-nos numa corrida vertiginosa até às nuvens que frequentemente cobriam tudo acima dos cinquenta andares. Mas com sorte, e eu tive-a, lá de cima tinha-se uma das grandes vistas que o planeta Terra urbanizado pode proporcionar. Uma paisagem com todos os clichés possíveis para descrever altitude indescritível. Nuvens que deslizam em semitransparências pelas vidraças espelhadas e aviões que passam abaixo de nós. Tudo isto visto dos decks abertos ao ar livre ou do interior num dos tais arcos em ogiva no mirante do piso 107.
Depois havia o Windows of the World. O restaurante no centésimo sexto andar. Claro que era caro. Tão caro quanto um restaurante num centésimo sexto andar com elevador privativo pode ser.
Aos trinta anos num dia de Sol em Nova Iorque é-se rico várias vezes ao dia. Sentindo-me num desses ciclos de abundância sem limites, apresentei-me lá para almoçar. Era Inverno e eu levava um poderoso blusão de couro que poderia ter enfrentado o gelo ártico, mas era totalmente deslocado no conforto tépido e alcatifado de um dos melhores restaurantes do mundo. Muito delicadamente perguntaram-me se estava sozinho ou acompanhado. Nessa altura ainda viajava a solo. O Maitre olhou então para mim e disse-me que teria que fazer o favor de usar um casaco ‘mais convencional’ que teria muito prazer em emprestar-me. Concordei imediatamente e trouxe-me um blazer azul-escuro de excecional qualidade e corte que me caía como se o tivesse mandado fazer em Bond Street.
Foi assim enfarpelado no mais casual chique que é possível, sem destoar da clientela, que me sentaram junto a uma janela que começava no chão e se prolongava dois andares até ao teto. Depois de um dos espantosos Traditional New York Steak, muito mal passado, e de um sumptuoso New York Cheese Cake que o metabolismo aos trinta anos ainda aniquila sem problemas de colesterol ou ácido úrico, fiquei a olhar o mundo lá de cima, bebericando o resto do aromático Zifandel da Califórnia, pensando que com um almoço assim, aos trinta anos, mesmo sozinho, a vida não era má de todo.
Depois, abandonei-me à quase queda livre dos cento e tal andares no elevador privativo para desembocar num dos imensos pátios interiores. Recordo-me de haver uma livraria junto à entrada de um dos acessos ao metropolitano. Comprei um dos livros de humor do mais talentoso dos nova-iorquinos. Woody Allen. Escolhi o seu inimitável Sem Penas que ainda hoje releio quando tenho que me recordar que as coisas só podem ser seriamente tratadas se não nos levarmos integralmente a sério. Voltei muitas vezes às Torres Gémeas. Por ser uma peregrinação ao bem-estar, levei os amores da minha vida. Tive a sorte de lhes poder mostrar dias de sol lá de cima e de dar graças a tudo nas alturas, sentindo-me bem comigo. Voltei uma última vez em 1993, sozinho, às Torres Gémeas para fazer a reportagem do primeiro atentado quando colocaram uma bomba no Parking subterrâneo. Na altura disseram-me que se tivesse deflagrado poderia ter feito desmoronar o sonho de Yamasaki. E com isso uma parte substancial da minha realidade. Não acreditei.
Depois veio o 11 de Setembro e relatei o que via na TV para audiências tão atónitas como eu, consciente de que o mundo, o meu e o dos outros à minha volta, nunca mais seria o mesmo.
Há um pormenor mais.
Vem daquela terrível fotografia do fotojornalista Richard Drew, da Associated Press, de um homem que se suicida do alto de uma das torres quando o inferno já estava declarado. Ele aparece numa queda vertiginosa ao longo dos tais caixilhos paralelos de metal que alinhavam toda a obra de Yamasaki, que não tinha sido concebida para ser fundo a um tal horror. Vem sozinho, de cabeça para baixo, braços encostados ao corpo como num abraço a si próprio. Num último conforto. Num último afago. Ou última despedida. Ou última consciência. Tem uma perna levemente fletida num abandono quase confortável que surpreende. E choca. Por tudo. Esse homem foi identificado pela roupa. Chamava-se Jonathan Briley. Tinha 43 anos a 11 de Setembro de 2001.
Era um empregado do restaurante Windows of the World.