Minorias

As minorias têm, por definição, de sofrer algumas restrições. Uma delas é esperar. Esperar que a sociedade amadureça o suficiente para acolher com naturalidade as suas reivindicações.

por Fátima Bonifácio

É do domínio do imaginário mas, ao menos teoricamente, não é absolutamente utópico. No mundo atual, que em décadas avança séculos, podemos talvez conceber um horizonte temporal em que, fruto de uma profunda e constante miscigenação, passe a existir uma única raça humana dotada de uma única língua – o inglês poderia vir a constituir o esperanto desse Novo Mundo Humano em que toda a gente no planeta teria mudado de cor da pele. A subsistência de Estados independentes, a verificar-se, não estorvaria a génese dessa novíssima humanidade uni-étnica e uni-color. Claro que subsistiriam factores de diferenciação social, como a classe social, a cultura ou a religião. Mas a homogeneidade étnica dissolveria muito do acinte que hoje em dia azeda as relações entre minorias e maiorias raciais não apenas no chamado mundo branco mas no mundo em geral. Veja-se o destino desgraçado dos uigures na China ou as ferozes guerras inter-tribais em África, geralmente ‘sobredeterminadas’ por clivagens de natureza étnica.

As nossas grandes cidades estão pejadas de bairros que são verdadeiros guetos, onde a polícia mal se atreve a entrar. Daí provém a maioria dos miúdos que faltam à escola, da qual não querem saber, por mais que o Estado providencie aos pais estímulos financeiros. Estes miúdos crescem longe dos pais, que trabalham arduamente para lhes por pão em cima da mesa. Estes pais, além de muitas vezes não possuírem as necessárias habilitações, estão demasiado cansados a ganhar a vida para acompanharem o percurso escolar dos filhos, que ficam ao Deus dará; mas não ficam inofensivos: é esta juventude que torna perigosos os comboios da linha de Cascais a partir das nove horas da noite. Formam bandos que se guerreiam nas ruas: estes são as pequenas minorias dentro da minoria maior que é o bairro ou o subúrbio. O que está na génese do ódio que alimenta estas rixas? Principalmente, pobreza, miséria. Mas não exclusivamente. Existe entre o que chamei pequenas minorias, acantonadas em bairros, uma animosidade latente, uma energia agressiva sempre pronta a explodir e que gera grupos inimigos que lutam pela soberania no espaço público; uma propensão anímica não muito diferente da rivalidade feroz que se verifica entre as claques dos clubes de futebol.

Não podemos, nem teoricamente, imaginar um mundo de onde estariam ausentes as clivagens sociais, pelo motivo de que os homens, brancos, pretos ou verdes, são demasiado diversos e possuem capacidades e aptidões muito diferentes. Mas podemos imaginar um mundo, ao menos teoricamente, do qual desapareceriam os bairros malditos gerados pela pobreza, que exacerba a maldade e a belicosidade humana. Teríamos então um mundo uni-étnico no qual todos, de uma maneira ou de outra, em maior ou menor grau, aproveitariam pacificamente da prosperidade geral. Com isto, seriam liquidadas duas das mais importantes nascentes da violência social: os conflitos inter-étnicos e a miséria económica acantonada nas periferias. Teoricamente falando, não estaríamos, portanto, perante fatalidades irremissíveis.

Não me atrevo a incluir a religião entre os fatores divisivos passíveis de obliteração. Tenho em mente sobretudo as três religiões do Livro. E devo reconhecer o potencial prosélito das mil e uma seitas espalhadas pelo mundo, tantas vezes agressivas. Pela parte das igrejas cristãs (das outras não faço ideia) tem havido nos últimos anos um esforço para conseguir um pacificador diálogo inter-religioso. É uma prova indireta de que se reconhece que a fricção ou, num grau mais exacerbado, a litigância entre religiões constitui uma fonte de conflito e instabilidade social. Creio que é mais fácil mudar de religião do que tornar-se ateu: os homens pura e simplesmente não aceitam a sua finitude, sendo a religião um modo de lidar com ela. (O ateísmo, falo por experiência, é uma forma de radical solidão no Cosmos, não sendo nós mais do que um átomo vertiginosamente passageiro.) De facto, abundam as conversões religiosas, mas não ainda em número suficiente para que qualquer uma das três grandes religiões se possa autoproclamar hegemónica. Seja como for, é possível mudar de religião, mais difícil será passar sem ela.

Não me pronuncio sobre os nacionalismos porque, a respeito destes, nada consigo imaginar. Registo apenas um paradoxo: quanto mais o mundo se integra, fruto da globalização, mais o nacionalismo se exacerba. Mas friso que a nacionalidade não é um bilhete de identidade para a vida inteira: é possível e fácil um alemão tornar-se francês ou um croata tornar-se peruano. E há sempre as nacionalidades por adoção, que não carecem de papéis nem de carimbos.

Um dia o mundo humano será uni-étnico; os miseráveis darão lugar a remediados ou até ricos; alguns católicos aderirão ao Protestantismo e alguns protestantes passarão a católicos; alguns italianos quererão ser alemães, alguns portugueses passarão a ingleses. Não faltará quem se queira mudar de Paris para o Alasca, ou da Andaluzia para a Noruega. No mundo contemporâneo, a possibilidade de mudança, das mais variadas ordens, parece não ter fim. Mas tem.

Esse limite manifesta-se no domínio do sexo e do género. Também aqui a mudança parece possível graças à transexualidade. Pura ilusão. Tenho genuíno respeito pelos transexuais, porque imagino o excruciante sofrimento por que passam até à decisão temerária da operação salvífica que transforma um homem numa mulher ou uma mulher num homem. Mas será que transforma mesmo?

Em 2017 Germaine Greer, conhecida pela sua ‘incorreção política’, proclamou numa universidade americana: «Eu não acredito que uma mulher seja um homem sem um pénis.» Segundo o Guardian (13.3.17), a conferência decorreu sob apertada vigilância policial para proteção da oradora. Pessoalmente, partilho o ceticismo de Greer. As mulheres, com pénis ou sem ele, são muito distintas dos homens quanto a sensibilidade, intuição, compreensão, inteligência e um não sei quê que as diferencia irremediavelmente do sexo masculino. (Ou devia ter escrito ‘género’?) Basta ver como as mulheres vivem a afetividade, ou assistir a uma discussão num grupo composto de ambos os sexos. Mutatis mutandis, também uma mulher não se torna um homem por uma simples transformação da genitália. E por muito que se tomem hormonas, a essência, o âmago da questão permanece. Existe um feminino e um masculino que vão para além da configuração do sexo.

Mas, seja o que for que daí resulte, é um facto objetivo que é fisicamente possível mudar de sexo. O demais são considerações mais ou menos especulativas. Existe, porém, uma categoria da população que não pode mudar: os homossexuais. Neste caso não há operações, nem pastilhas, nem psicanálise, nem hormonas que valham. Diz-se muitas vezes que a homossexualidade é uma opção! É das afirmações mais falsas e hipócritas que se podem produzir. Ninguém, se pudesse escolher, quereria ser homossexual, um atributo ou qualidade que está muito longe de ser aceite pela sociedade em geral. A única escolha que existe é entre esconder a homossexualidade, vivendo uma vida dupla e mentirosa – como são todas as vidas duplas – ou assumir a homossexualidade sem complexos e com toda a naturalidade. Porquê? Porque, em regra geral com as suas exceções, se nasce homossexual, como se nasce surdo e burro ou um génio e uma beleza.

Suponho que a maioria ou uma grande parte dos homossexuais viva hoje em dia convencida de que a sociedade os aceita sem restrições e estão por isso plenamente integrados e assimilados. Ilusão! Se sairmos de Lisboa para a província, logo notaremos como os homossexuais são objeto de irrisão – se não às claras, às escondidas. Se em Lisboa penetrarmos nas classes sociais menos instruídas e economicamente mais desfavorecidas, logo notaremos a mesma reação do provinciano. E se penetrarmos nas classe mais alta, verificaremos que a homossexualidade é um tabu – não existe.

A ‘coisa’ desaparecerá com o tempo, dirão os otimistas ou os crentes. E eu digo: não, não desaparecerá, a não ser, possivelmente, em aparência. Os primeiros invocam os progressos entretanto já alcançados, e não sou eu quem os negue. Mas não haja ilusões: qual a percentagem de habitantes que pura e simplesmente não leva a sério o casamento homossexual??? Qual a percentagem de habitantes que sentiu a sua consciência violentada com a aprovação do casamento homossexual? ‘Já não bastava a união de facto?’, perguntam. Pessoalmente, entendo que as minorias têm, por definição, de sofrer algumas restrições. Uma delas é esperar. Esperar que a sociedade amadureça o suficiente para acolher com naturalidade as suas reivindicações. Em nome de quê? Em nome do respeito pelas convicções tradicionais de tantos concidadãos que jamais se conformarão com os novíssimos costumes que agridem os seus sentimentos mais arreigados e íntimos. Como liberal que sou, opto pelo gradualismo. Ora a institucionalização da homossexualidade foi entre nós tudo menos gradual.

Finalmente, há um outro grupo étnico-social impossível de ser genuinamente assimilado: os judeus. Nasce-se judeu. Esta condição não pode ser mudada. Judeus e homossexuais – que nada têm entre si de comum a não ser a impossibilidade de mudança – são grupos mais vulneráveis às reviravoltas do poder ou da opinião. Viu-se isso, por exemplo, na Berlim dos anos vinte e trinta. Nos anos vinte, Berlim era a capital da libertinagem e da tolerância. Depois, nos anos trinta, com a ascensão do nazismo, foi o que se sabe. E não foi só na Alemanha nazi que ambos os grupos – entre outros – foram proscritos, encarcerados e abatidos. A repressão abateu-se sobre eles na União Soviética e na Europa em geral. Quem garante que a regressão se não repetirá? Ficámos a saber pelo Expresso desta semana que a homofobia e o racismo em Espanha registaram um aumento preocupante.