Chamam-lhe O Bairro da Ponte. É uma zona aprazível de Paris que bordeja o Bosque de Bolonha. E a canção começava assim: «Le 9 avril 1933/A 9 h du matin à Neuilly sur Seine/Est né de Paul, est né de Madeleine/Jean-Paul, mais c’est Bébel qu’on l’appelle…».
No dia 6 de setembro, com 88 anos, a história que começou em 1933 acabou: «Jean-Paul Belmondo est mort». Foi, para alguns mais exagerados, a morte de todo o cinema francês. Bébel, como gostavam de o tratar, tomou conta do coração do povo. Jean Dujardin, discursou comovido quando entregaram a Belmondo o César de Honra em 2017: «Ele foi, sozinho, todo o cinema francês. Representou a reconciliação da cultura popular e do cinema de autor. O mesmo homem que abriu as portas à Nouvelle Vague e brincou com guignolos, de cuecas, dependurado de um helicóptero».
Hoje, por toda a França, recordam-se tiradas suas que marcaram o cinema para sempre. O lábio superior grosso, o nariz esborrachado, o chapéu caído sobre a testa: «Sabem qual é a diferença entre um idiota e um ladrão? O ladrão, volta e meia, tira férias». (Le Guignolo, de Georges Lautner).
Jean Valee escreveu a vida de Belmondo em poema, mais tarde transformado em canção: «Petit-fils de Paul l’Italien forgeron/Petit-fils de Roseline (Soliveau)/Du Piémont jusqu’à Denfert-Rochereau/Il est venu le Belmondo/Roulez tambours, sonnez trompettes».
Issy-les-Molineaux é outra zona aprazível dos subúrbios de Paris na qual o Sena domina a paisagem e há verde por todo o lado. Durante muitos anos, a profissão levou-me até lá. Correspondente do France Football, ia trabalhar para a redacção de cada vez que desembarcava na cidade. Depois ficava à conversa com os meus bons amigos Erik Bielderman, Jean-Phillipe Rethaeker e Dennis Chaumier até à hora de ser noite e irmos à procura de lugares onde a sede das madrugadas se mata devagar. Foi aí que cresceu Belmondo. «En 1939 la guerre se déchaîne/Et c’est l’exode à la Claire Fontaine/Il se fait jeter d’écoles en écoles/Il est déjà le vrai clown du music-hall/Un jour dans une bataille rangée/Une de celles dont il avait si bien le secret/Un mec lui a d’un coup bien appliqué/Cassé son cap, sa péninsule, son nez!».
Rapaz de rua, rufia, sempre envolvido em sarilhos – sacré Bébel! O murro que levou em cheio no nariz foi tão forte e tão certeiro que o deixou marcado para sempre.
Inquietação!
No dia 19 de janeiro de 1959, Jean-Paul casou com Renée, a quem chamavam Elodia. Tiveram três filhos: Patricia, Florence e Paul. O cinema bate-lhe à porta como o tremendo êxito A Bout de Souffle, de Jean-Luc Godard, em 1960._Interpreta Michel Poiccard, um jovem marselhês que rouba um carro para vir à procura de uma vida em Paris. Seguiu-se outro êxito – L’Homme de Rio (1964). Borsalino viria pouco depois. Andava nas bocas do mundo e escorregava na corda bamba. Usa e abusa do seu charme, da sua juventude, passa pelos braços de Ursula Andress e Laura Antonelli, tem uma outra filha, aos 70 anos, com a dançarina Natty Tardivel, de apenas 24, avança como co-fundador do Paris Saint-Germain, ele que gostava tanto de ringues como de estádios. Dois AVC consecutivos abanam a sua estrutura de homem imbatível. «Tendre Voyou, Pierrot le fou/Le cerveau, Borsalino/L’animal, le marginal/Les voyous, Les morfalous/Le casse, l’As des As et j’en passe/Peur sur la ville, L’homme de Rio/Il triomphait le Belmondo».
Em Issy-les-Molineaux há um velho clube de boxe, o Avia. ‘Boxe Anglaise’, sublinham eles. A ‘Boxe Française’, ou a savate, dá direito a uns pontapés nas fuças. No final dos anos 40, um rapazito nascido num dos belíssimos subúrbios de Paris, filho de um pied-noir argelino, passava lá mais tempo do que nas salas de aulas. Era Jean-Paul Belmondo e iria ter um das mais vertiginosas carreiras da história do boxe.
No dia 10 de maio de 1949 sobe ao ringue para o seu primeiro combate amador, enfrentando um matulão bovino: René DesMarais. Logo no primeiro round, Jean-Paul aplicou-lhe um direto tão violento nos queixos que o deixou estendido. Os dois combates seguintes foram mais renhidos. Belmondo venceu ambos por KO, tal como o primeiro, mas não se livrou de apanhar à grande e à francesa. Olhou-se ao espelho e observou com atenção o seu nariz torto, de cartilagem amassada, os olhos desorbitados e os lábios rachados. Mais tarde diria: «Deixei o boxe no dia em que senti que ele estava a mudar a minha cara».
Valee acaba assim a sua canção sobre Belmondo: «J’ai gardé pour la fin de ma chanson/Son époustouflante prestation/Sur les planches du théâtre Marigny/Messieurs du Conservatoire merci/La salle pleure, la salle rit/Et la salle craque, c’est l’apothéose/Cyrano de Bergerac/C’est un étendard, un drapeau/Le magnifique, c’est Belmondo!».
Belmondo é muito estimado pelos seus compatriotas mas, para mim, num gosto pessoalíssimo, tem tiques exagerados de canastrão, como gostam de dizer os homens do cinema, embora a milhares de anos-luz do seu émulo Alain Delon. Pode ter deixado o boxe ao fim de três combates apenas, mas o boxe não o deixou, marcando-o para a vida com uma das bicancas mais caliginosas da sétima arte. E pode ter deixado o boxe nos ringues mas nunca o deixou como espetador, sendo até ao dia da sua morte um habitué de Cannet, a maior sala de combates da Côte d’Azur.
Em 1963, Jean-Pierre Melville resolveu realizar uma comédia policial baseada num livro de Georges Simenon: L’Aîné des Ferchaux. Um velho banqueiro rico, Dieudonné Ferchaux, envolvido numa série de trafulhices, é obrigado a sair de França, perseguido pela Justiça, e põe-se na alheta para Nova Iorque e Nova Orleães levando a reboque o guarda-costas Michel Maudet.
O filme tornou-se aporrinhante para Melville mesmo antes de começar a rodá-lo. Queria Spencer Tracy para o papel de Dieudonné mas, na altura, o americano estava muito doente e nenhuma companhia de seguros quis responsabilizar-se por ele. Aliás, só faria mais uma película na vida, Guess Who’s Coming to Dinner, precisamente no ano em que morreu, 1967. Por isso, Jean-Pierre teve de se contentar com Charles Vanel, um bretão que vinha dos tempos do cinema mudo, herói da I Grande Guerra, e com quem tinha uma embirração latente. Também quis Alain Delon para fazer de Maudet mas Alain nem lhe atendeu o telefone. Belmondo seria a sua segunda escolha.
Melville e Jean-Paul já tinham trabalhado juntos num filme filosófico chamado Léon Morin, Priest. Para Belmondo foi uma grandessíssima estucha. Preferia ação e comédia. Era um leitor voraz de Tintin, revistas desportivas e livros policiais.
«Roulez tambours, sonnez trompettes/Soixante berges ça se fête/Du conservatoire à Cyrano/Il a joué le Belmondo/Du conservatoire à Cyrano/Il a joué le Belmondo», cantava Jean Valle. Belmondo nunca acabou L’Aîné des Ferchaux. Melville era um fulano dado a frequentes excessos de linguagem e, certo dia, resolveu tomar Vanel de ponta e insultar-lhe a família até à quinta geração. O sangue de Jean-Paul ferveu como costumava ferver nos ringues. Arrancou os inseparáveis óculos escuros do realizador e aplicou-lhe um uppercut arrasador. Depois foi-se embora. Fizessem o resto sem ele e sem o seu nariz inconfundível que teve direito a canção: «Un jour dans une bataille rangée/Une de celles dont il avait si bien le secret/Un mec lui a d’un coup bien appliqué/Cassé son cap, sa péninsule, son nez!».
Jean-Paul morreu. Incorrigível, solitário, magnífico, anárquico, sedutor imparável. A polícia francesa resolveu homenageá-lo por ter desempenhado tantos papéis de gendarme e detetive: «Mesmo que não passasse de cinema, você é um de nós, monsieur Belmondo». As sequelas dos AVC nunca o largaram. Tornou-se demasiado frágil para o seu estilo de mauzão, às vezes bruto, tantas vezes terno. «O talento é como um diamante – é preciso esculpi-lo», disse um dia. Morreu tentando. Tentando sempre.