por Sofia Aureliano
1. Vencedora inequívoca. A abstenção foi a grande vencedora da noite eleitoral, com 46,35% dos eleitores a escolherem não votar. Este foi o segundo maior número de sempre em eleições locais, que são normalmente as mais participadas. Nem a proximidade com os candidatos fez quebrar a tendência crescente do aumento do desinteresse pela atividade política. Este é um problema grave que tem de ser alvo de reflexão e de estratégia, fora dos momentos eleitorais. Mas, infelizmente, como bem notou Maria Flor Pedroso no comentário da noite de domingo, a abstenção apenas é tema de conversa até aparecerem os primeiros resultados. Serve, portanto, para efeitos de verborreia enquanto não há mais nada para dizer, para além de suposições, palpites de fé e análise de sondagens (que já se viu que pode ser um tiro no pé). Depois de se saber o primeiro resultado ditado pela vontade popular, normalmente de um concelho mais pequeno em que a contagem é mais célere, passa o foco a estar em quem ganhou e quem perdeu. Esquece-se o importante tema e a consequência de que com o nível de abstenção elevado como está, perde a democracia e perdemos todos nós.
É necessário que este não seja um debate feito em paralelo com os momentos eleitorais. Porque acaba por se tornar um tópico marginal e não digno da atenção devida. Deverá ser analisado no rescaldo e o resultado eleitoral ser mote para a necessidade de definição de estratégias de intervenção e de combate.
Primeiro, é preciso perceber o porquê. Porque é que cada vez mais pessoas se demitem do exercício deste direito fundamental? Depois, é preciso identificar os abstencionistas. Quem são, que idade têm, qual a sua formação, onde vivem e o que fazem? Encontradas as respostas as estas perguntas, podemos pensar no que pode ser feito para aumentar o número de eleitores efetivos.
Há quem defenda o voto obrigatório, como já é prática reiterada noutros países. Confesso que me incomoda falar em obrigatoriedade para garantir exercício de direitos e não acredito em chicotes para resolver os problemas. Defendo, antes, a criação de sistemas de incentivo, ações de nudging que demonstrem que o exercício do voto traz benefícios (para além do óbvio que é a possibilidade democrática de ter voz e escolher os seus representantes). Mais do que penalizar quem não vota, julgo que é mais eficiente premiar quem o faz. Simbolicamente. Por exemplo, através da criação de um sorteio para atribuição de prémios entre os eleitores votantes.
Os mais conservadores poderão considerar ultrajante que tenha de se criar este tipo de iniciativas para levar os portugueses às urnas e dissertarão sobre como estas estratégias enfraquecem o ato de votar per si. Mas a verdade é que, ato eleitoral após ato eleitoral, é cada vez mais evidente que a simples possibilidade de votar não é motivação suficiente para que metade da população eleitora o faça.
Concordando ou discordando, não vale a pena lutar contra evidências. É preciso constatá-las e usá-las a favor da ação política.
Outra conclusão a que será chega quando se analisar perfis de abstenção é que os mais jovens são hoje muito mais abstencionistas do que eram há uma e, sobretudo, há duas décadas. Associa-se esta atitude a um desinteresse e consequente afastamento crónico da política, que pode ser quebrado com intervenção nos programas educativos, como se fez com combate às alterações climáticas, à poluição, ou educação para a reciclagem. Hoje, são os jovens os principais embaixadores destas causas e os primeiros a demonstrar como se deve agir.
A política pode ser um universo interessante para os jovens se for explorado em associação com outros universos que lhes são mais familiares. Como exemplo, deixo a sugestão de utilização da gamificação para criação de mecânicas de proximidade. Se os jovens passam tantas horas a jogar, poderá haver benefícios em adaptar conteúdos políticos a formatos de jogo. Mesmo para idades inferiores àquela em que se pode votar, porque o conhecimento é um edifício em construção. Não aparece construído.
Independentemente da estratégia que for criada, é essencial que o tema da abstenção seja abordado e explorado, e que não se adie esta reflexão para o próximo ato eleitoral. Se assim for, continuaremos a resignar-nos ao lamento passivo do número crescente de abstencionistas.
Este é um item estruturante para o caderno de encargos da Presidência da República. O combate contra a abstenção deve ser tema prioritário para a primeira figura do Estado.
2. Os vencedores e os derrotados. Estas são eleições locais, mas habitualmente são vistas a duas distâncias. A olho nu, os resultados são reflexo de uma vontade local, sustentada na performance de um conjunto de candidatos, encabeçado por uma liderança e associado, ou não, a uma cor política. Ganha quem tem mais votos, a pessoa e o coletivo de candidatos.
Na análise global, contam-se as vitórias por partido (ainda que muitas vezes o resultado não tenha qualquer tradução naquela que seria uma escolha nacional), e associa-se a consequência global a um julgamento sobre o líder partidário.
São os próprios líderes que alimentam este entendimento, determinando metas concretas como critérios de manutenção pessoal no poder.
Qualquer destas duas visões é redutora, se for vista isoladamente. Nem sempre ganha o candidato apesar ou independentemente do partido ou movimento que representa, assim como nem sempre os resultados devem ser interpretados como mensagens diretas para o partido ou a liderança. Depende dos concelhos, das equipas e de que partidos falamos.
Retirar da vitória do PSD em Lisboa apenas um cartão amarelo ao governo e um descontentamento crescente em relação ao status quo e ao incumbente é altamente penalizador e injusto para o candidato vencedor, que fez história contra todas as expectativas e previsões ao impedir Fernando Medina de cumprir o seu terceiro mandato. A coligação Novos Tempos ganhou, em primeiro lugar, porque é encabeçada por Carlos Moedas. Foi nele que a maioria dos eleitores lisboetas apostaram e foi a ele que confiaram a gestão dos desígnios da cidade nos próximos quatro anos. Acreditando no seu projeto e na equipa que escolheu para o implementar.
Ouvi retirarem-se conclusões sobre o resultado da capital estar associado à arrogância de Medina, ao desgaste da governação socialista, ou ser um aviso à navegação feito ao governo. Ouvi deduzir que a vitória do PSD em Lisboa é sobretudo um “sim” expressivo a Rui Rio.
Tais análises são, no mínimo, forçadas. Garantidamente, são ilações secundárias que servem o propósito do combate político generalizado, compreensivelmente, porque Lisboa é um bastião eleitoral para qualquer partido, e porque é preciso manter a disputa política em momentos não eleitorais. Ganhar Lisboa não é um facto de somenos importância. Mas a vitória é partilhada e tem de ser segmentada com vários pesos e medidas.
Os factos já demonstraram que as autárquicas não traduzem intenções nacionais. Mas deixam respirar sentimentos, predisposições, aversões e empatias. A leitura mais cautelosa e, a meu ver, mais adequada, passa por considerar que os líderes nacionais ora vão à boleia dos resultados locais, ora por arrasto com eles.
Estando à mercê de características pessoais dos candidatos como a popularidade, o caráter e a capacidade de comunicação e de liderança, pouco depende deles (para além da escolha dos candidatos), não deixando de lhes ser atribuídas as causas e as consequências. Sobretudo as más.
E porque jogam o seu futuro político em eleições em que não são candidatos, sujeitando-se “à sorte”, às vezes corre bem – como aconteceu ao PSD e a Rui Rio, – outras vezes, corre mal. Nestes casos, dá-se o princípio do fim de uma era política.