Uma mente inquieta nem sempre se pode ocupar de questões sociais e políticas. Ou gerais e mediáticas. Não controlamos os pensamentos e, às vezes, divagamos para lugares mais desassossegados. Não estranhem, por isso, que esta crónica seja tresmalhada. É só aparentemente, garanto, porque, no fundo, no fundo, não faço mais do que dissertar sobre o alimento do âmago. Como quando falo de questões sociais ou políticas, gerais ou mediáticas.
Esta semana, o Polígrafo fez o fact checking de uma notícia que revelava um contrato por ajuste direto, realizado pela Câmara Municipal de Lisboa, no valor de 11 mil euros, para aquisição de uma obra de arte contemporânea. A polémica referia-se à ausência da publicação do contrato, que se veio a confirmar não ser obrigatória.
Até aqui, nada de novo. A obra existe, foi adquirida pelo valor noticiado, mas este tipo de aquisições está longe de ser inédito no poder local e o valor até é aceitável, sobretudo quando comparado com outro tipo de investimentos de autarquias menos capitalizadas.
Isto para dizer que, não sou eleitora do município, mas, se fosse, não me sentiria escandalizada com tal valor gasto em arte contemporânea, com o mote de incentivo à produção artística nacional.
O que me deixou sobressaltada foi a imagem da dita obra de arte, a que o autor, Gonçalo Barreiros, deu o nome de “Sem Título” (mais adequado seria impossível).
Perdoem-me a ignorância estética – estou certa de que se tratará de uma incapacidade pessoal justificada por ser absolutamente leiga na matéria – mas tenho dificuldade em ver “arte” na obra referida: três espécies de molduras metálicas, com tamanhos e formas diferentes, colocadas sobre um fundo de parede branca. Nada contra os materiais utilizados, até porque aprecio várias obras de outros artistas plásticos que recorrem a matéria muito menos convencional.
As minhas desculpas ao autor, de que não conheço mais obra, se estiver a ser tremendamente injusta ao negar um estilo e uma assinatura muito particulares. Mas o que me parece que é injusta é esta aquisição, que utiliza onze mil euros do erário público para divulgar … o nada, quando temos o setor da Cultura a precisar tão desesperadamente de apoios. Sou incapaz de valorizar uma obra que me sentiria capaz de fazer. Porque tenho consciência de que não desenho uma linha direita e não fui abençoada com qualquer vocação ou talento artísticos.
Sorte terá este autor que encontrou fãs do seu trabalho entre o executivo camarário em fim de funções.
Dirão: trata-se de uma visão, é expressão artística. Acredito. E respeito. Mas as obras também vivem do que inspiram a quem as observa.
Chamem-me insensível, antiquada, obtusa. Provavelmente sou isso tudo em relação à arte contemporânea. Mas haverá também quem partilhe as minhas dores. Aquilo que não sou é hipócrita.
Alcanço o simbolismo de Yves Klein quando, em 1958, exibiu a sua “The Void”, uma simples sala de galeria vazia. Compreendo-o (ainda que a minha leitura deva ser diferente da original). Acho criativo, disruptor, atrevido.
Não posso dizer o mesmo agora.
Sei que há uma corrente dedicada especificamente à “Arte do Vazio”, às obras que se constituem de nenhuma materialidade física (o que, em si mesmo, considero já demasiado etéreo e propício a causar dores de cabeça). Pressuponho que até se possa considerar arte de empoderamento, na medida em que cada obra representa aquilo que vemos nela e que queremos que represente. Enquanto consumidores, seremos também coautores?
Sobre esta corrente, questiono-me: como se avalia uma "não obra"? Porquê 11 mil e não 100 mil euros? Ou mais, como valem tantas outras obras.
E eu, mesmo não conhecendo pessoalmente os responsáveis curadores do referido executivo camarário, também posso ser criadora apoiada pelo fundo municipal?
Veio-me à memória a história recente de um artista dinamarquês, Jens Haaning, a quem o Museu de Arte Moderna Kunsten pagou 72 mil euros por uma obra que recriasse a diferença de rendimentos entre austríacos e dinamarqueses. O dito artista entregou duas telas vazias, intituladas “Take the Money and Run”. Que foi exatamente o que fez, alegando que criou arte, e que esta foi a forma que encontrou para se manifestar contra as más condições de pagamento do museu a artistas plásticos. Será que a obra do português Gonçalo Barreiros também esconde uma reivindicação?
Feita alguma introspeção sobre a “Sem Título” – que é o mínimo que posso fazer para não ser justamente acusada de precipitada e maldizente – até lhe encontro associação ao estilo de governação atual: muita preocupação com o exterior e a forma como se apresenta, ausência total de preocupação com o conteúdo. Muita propaganda, pouca ou nenhuma ação. Vendo bem, é capaz de esta obra ser a melhor analogia possível a uma governação socialista: show off de alegados visionários que, bem espremidinho, dá uma mão cheia de nada.
Enfim. Cada um verá nesta arte a sua verdade.
Nos dois casos, as obras estão expostas. Na Dinamarca, as telas vazias podem ser apreciadas em exposição, no Kunsten. Mas, por se tratar de dinheiro público, independentemente de compreender ou não as motivações que alegadamente materializada, o diretor do museu exigiu ao artista o dinheiro de volta.
Em Lisboa, a “Sem Título” integra o espólio do Fundo de Arte Contemporânea da CML que, anualmente, reserva 100 mil euros para aquisição de peças desta manifestação artística. Na última semana em exercício, Medina quis arrumar a casa e deixar todas as grandes promessas tratadas. Foi por isso que gastou 95 mil euros em nove contratos de aquisição de arte contemporânea, em quatro dias. Só para deixar o edifício dos Paços do Concelho acolhedor e bem decorado (é subjetivo).
De qualquer forma… foi obra!