Por João Maurício Brás
Não se consegue compreender o Portugal contemporâneo sem Salazar. O viés emocional e ideológico, contudo, impede-nos de ser rigorosos sobre esta temática. Um livro recentemente publicado, Que Salazar era o Salazar de Fernando Pessoa, (ed. Guerra e Paz) é um contributo fundamental para essa compreensão. Os originais publicados são acompanhados por textos de uma qualidade única de Manuel S. Fonseca, sobre questões relacionadas com Salazar e Portugal, a ditadura militar, a igreja, a censura, Afonso Costa, etc..
Salazar é a figura tutelar dos últimos quase cem anos. Mas quem foi e o que significou para além da sua diabolização, por uns, e mitificação salvífica, por outros?
O Salazar de Pessoa, não é o meu, tal como a ideia que tem do comunismo, mas este conjunto de textos torna-se obrigatório para falarmos do tema.
Pessoa descreve-nos, de modo implacável, o que foi e quem foi essa figura, a sua diferença para o nazismo e o fascismo (italiano) e o que foi afinal o «sonolento fascismo português».
Pessoa foi antissalazarista, porque a alternativa nunca é entre vários males, mas entre o que é mau e o que tem de ser bom. O fascismo, ou a sua vertente saloia, o salazarismo, será sempre um mal, mas haveria melhor? Em termos de qualidade política, a maior parte dos políticos do século XX e XXI são muito inferiores a Salazar.
Pessoa foi também antissocialista e anticomunista e antifascista, na verdadeira expressão do significado, que diz respeito ao fascismo como doutrina política.
Dizia do comunismo que se o lixo mental e moral de todos os cérebros pudesse ser varrido e reunido, teríamos a figura do comunismo. E do fascismo, que o seu mérito principal fora o de organizar o sistema ferroviário. Com o fascismo os comboios chegavam sempre a horas. O fascismo mata-nos um familiar, mas metendo-nos num comboio, chegamos a horas ao seu funeral.
Que falta nos faz um Pessoa para nos descrever com tamanha lucidez o que é um Costa, um Barroso, um Passos, um Cavaco, um Sócrates, e este atraso que é Portugal.
Diz-nos que Salazar era um contabilista, um teocrata pessoal, um tirano que governava por contabilidade (sempre eles) e que teríamos de levar a cabo a cesarização de um contabilista. Ainda que assinalando os defeitos, reconhece-lhe algumas qualidades.
Nas últimas décadas quem nos governa (salvo honrosas exceções) só tem defeitos e ausência de qualidades. Os tempos são outros, mas Pessoa é sempre intemporal e o seu apelo continua urgente. A boa política consiste em contribuir para a independência, autonomia e maturidade de cada pessoa. A ordem imposta à custa da perda da liberdade e autonomia, é uma má ordem. O tirano foi substituído pelo despotismo estatal. Transitamos de uma ditadura onde predominava uma mediocridade com pudor para esta democracia que é uma mediocridade despudorada.
Magistral o pequeno texto sobre o português: «Trata-se de governar estas bestas, e não de as transformar em gente». Tem sido esta a relação do povo com a política desde o início do século XX.
O português é a besta que se põe a jeito e tem de ser governado. Ora, a verdadeira política consiste em transformar as bestas em gente autónoma, com .sentido cívico, espírito crítico, iniciativa individual e ética. A boa política tem de criar o «ambiente para os portugueses se transformarem a si mesmos». ,…Como não temos esse trabalho, vivemos ainda na pátria «abjeta, e vil».