Por Sofia Aureliano
1. Tempo de palco. Há tanto entusiasmo mediático e sobressalto social com a hipótese de uma crise política, que o melhor mesmo seria tomarmos todos uns comprimidos para a memória. Porque não a temos nas melhores condições.
Todos os anos, na mesma altura, temos ameaças de crise política. Até durante a pandemia tivemos. Dá-se o drama e o horror do exercício de pensar “e se o orçamento é chumbado?”. Perda de tempo. Falta de memória. Senão, vejamos: desde 1979, alguma vez foi?
Há quem diga que “desta é que é mesmo a sério”. Já perdi a conta do número de vezes que ouvi isto. De amigos, de comentadores e analistas políticos, de indivíduos a vaticinar o futuro enquanto bebem tranquilamente o seu café pela manhã. Há uns tempos, ainda me dava ao trabalho de contra-argumentar, de dizer o que me parece óbvio: que isto é mais do mesmo, que esta encenação é sobejamente conhecida e que pode tranquilizar-se quem teme grandes mudanças que, depois de 25 de novembro, Portugal vai estar na mesma. Se calhar um pouco mais pobre, mais endividado, com menos perspetivas de crescimento, mas politicamente na mesma.
Agora, já nem me canso. Parece-me estúpido perder tempo com teorias sobre qual será o desfecho das alegadas insatisfações do PCP ou do BE. Batem o pé enquanto podem, fazem a pressão possível para ver se minimizam o impacto negativo que a aliança com o governo tem provocado no seu eleitorado. Mas, no fim do dia, se virem que o outro não se chega à frente, avançam. Vão acabar por patrocinar a manutenção do Partido Socialista no poder.
Porquê? Porque nem o BE nem o PCP se podem dar ao luxo de ir a eleições neste momento. Depois dos últimos três atos eleitorais, que se traduziram em rotundas derrotas para ambos, só por milagre é que os partidos conseguiriam manter o número de assentos parlamentares que hoje têm. Os analistas políticos sabem isso, e os dirigentes partidários também. Porque mesmo quando não assumem as derrotas, sabem ver o estado decadente (um deles, já moribundo) em que se encontram.
Avaliado o cenário, é melhor um pássaro na mão do que dois a voar. Que é o mesmo que dizer que é preferível ter uma hipotética influência numa ou duas medidas orçamentais, que permita embandeirar em arco como grande conquista política, do que ir a eleições e não conseguir eleger deputados para materializar quaisquer manobras engenhosas de arquitetura de votos. Agora, não há geometria que os salve. Nem a dois, nem a três e, provavelmente, nem a quatro. Porque o PAN cresceu nas legislativas, mas não teve o esperado (por eles) boom nos momentos eleitorais seguintes. Foram sucessivos atos falhados.
Sem surpresas, o BE e o PCP estão, neste momento, a pôr em marcha o seu plano de palco, seguindo o cronograma que já tão bem conhecem. Enquanto puderem, e forem apoiados pela excitação e histeria dos meios de comunicação que parecem acreditar em unicórnios saltitantes e sereias arco-íris, vão mantendo a dialética de que o que os move é a luta pelos portugueses, trabalhadores e pensionistas. Quando chegar a hora da verdade, podem não votar a favor, porque isso implicaria mais ajustes de contas com as bases dos partidos. Depende da moeda de troca. Mas viabilizam sempre. Naturalmente.
2. Exercícios inúteis, mas rentáveis. Se é tão líquido qual é o final da história, porque será que os meios de comunicação investem tanto tempo a debater sobre cenários improváveis com grandes planos e horários nobre? Porque qualquer crise dá audiências! Seja hipotética ou real. Nós, portugueses, temos queda para o caos e a desgraça e um fraquinho por sangue derramado. Não temos culpa. É o nosso fado. Mas, se pensarmos bem, o exercício até pode ser divertido.
Imaginemos então o cenário em que, pela primeira vez na história democrática, um governo cai por ver o seu orçamento chumbado. Quem seriam os vencedores e os vencidos?
O BE e o PCP garantidamente perderiam votos, o que faria reduzir exponencialmente a sua representação parlamentar. O PAN não conseguiria capitalizar para si qualquer apoio, decorrente destas circunstâncias. O PS seria inequivocamente um dos derrotados porque, não estando no plano atingível a possibilidade de conseguir uma maioria absoluta, uma futura governação socialista seria mais do mesmo, se não fosse ainda mais tortuosa. E como António Costa já demonstra não estar com paciência para negociações ou “toma lá, dá cá”, provavelmente nem ia a votos e deixava a cadeira vazia, alimentando uma inflamada disputa pela sucessão. O PSD, que durante os últimos tempos de pandemia se focou em fazer uma “oposição construtiva” sem fazer grande sombra ao executivo, ainda não teve tempo de se organizar para constituir uma frente mais combativa e capaz de disputar, taco a taco, a cadeira do poder. É cedo agora e será cedo daqui a uns meses, independentemente do resultado das eleições internas. Vitórias minoritárias até podem ser possíveis à esquerda e à direita, mas não servem a estabilidade governativa que qualquer um dos partidos de poder procura. E não serão mais do que um penso rápido, que tem de ser substituído por uma real solução. Ou seja, do PS ou PSD podem esperar-se apenas vitórias poucochinhas.
Alguém sairia reforçado com eleições antecipadas? O Chega, seguramente. Depois do número expressivo de eleitores que o partido conseguiu, quer nas presidenciais, quer nas autárquicas – em que participou pela primeira vez – tudo leva a crer que repetisse a proeza. Sendo um coletivo que vive e sobrevive de descontentes, provavelmente teria ainda mais adeptos contra-sistema num quadro de crise política. O que seria do Parlamento se o Chega fosse a terceira força política mais votada? Não seriam boas notícias. O melhor mesmo é não esperar para ver.
3. Amuos mal criados. Esta semana, houve a tomada de posse dos novos órgãos do poder local e deram-se cenas dignas de um episódio de tesourinhos deprimentes. Não tenho nada contra o reeleito presidente da Câmara Municipal de Sintra, para além de achar que não era o melhor candidato para a função e que, ao fim de dois mandatos, já deu provas de que não é o presidente que os sintrenses precisam. São observações de cariz político, que nada têm a ver com o caráter de Basílio Horta, ou das suas qualidades e defeitos enquanto ser humano. Os planos não são para misturar.
Mas parece que o dito presidente reeleito os mistura e esquece o pendor democrático associado a qualquer debate. O jogo eleitoral é assim: uns têm mais votos, outros têm menos, mas são os eleitores que definem o “quem é quem” no tabuleiro do jogo. E cabe aos jogadores, pressupostos homens sérios e de bom caráter, aceitar humildemente os resultados e preservar uma relação saudável com os demais candidatos.
No mínimo, espera-se boa educação no trato. Não foi o que Basílio Horta demonstrou quando se recusou a cumprimentar o seu principal opositor, Ricardo Baptista Leite, na tomada de posse deste para o lugar que os eleitores lhe confiaram: o de vereador da oposição. Não sei qual é o argumento ou motivação, mas parece-me ser um ato de desrespeito injustificável. Talvez não devesse submeter-se à vontade popular se não tem jogo de cintura para aceitar os resultados.
Amuos e enfados à parte, fica-lhe tão mal ser mal criado!