Moda… Se lhe quiséssemos arranjar sinónimos talvez escolhêssemos o estilo, a tendência, a voga, mas também a seriedade. Há décadas que o universo do vestuário se apresenta como um ponto crucial na identidade de uma cultura, de um país. Ouvimos, muitas vezes, que somos aquilo que comemos, que somos também as pessoas com quem estamos. E será que também somos aquilo que vestimos? Talvez a “magia” esteja precisamente aí. Talvez muita gente se apaixone pelas passerelles precisamente por esse facto. A versatilidade, diversidade, a criatividade e a inovação… A conversa através dos tecidos que se transformam e dão vida aos manequins que lhes dão espaço para ser e vibrar. Mas os tempos mudam e, além dos tecidos evoluírem e ganharem outras formas, também os conceitos e os públicos se alteram.
UMA NOVA APOSTA Demna Gvasalia, designer de moda georgiano, atualmente diretor criativo da Balenciaga e co-fundador da Vetements, já havia surpreendido com a criação de uma versão de Crocs metaleiras, que tem como objetivo “se aproximar das novas gerações”. O estilista reinterpretou o “vulgar” exemplar de borracha com uma pegada punk, adicionando-lhe uma plataforma, parafusos e acabamentos de metal.
Aquilo que o público da Semana da Moda de Paris desde ano poderia não esperar, era que a paixão do artista pela aclamada série de animação Os Simpsons fosse transportada até à as passerelles, rompendo com o seu “tradicional conceito”. Gvasalia deixou as/os modelos de lado para dar lugar às personagens amarelas mais conhecidas da indústria do entretenimento. Para a primavera/verão de 2022, o diretor criativo da Balenciaga apresentou aos convidados presentes na Semana da Moda de Paris, que decorreu entre 27 de setembro e 5 de outubro, um vídeo de 10 minutos que, na realidade, não era mais do que um episódio personalizado de uma das séries que mais temporadas já apresentou em televisão – uma surpresa que durou mais de um ano a ser realizada, e o resultado de uma colaboração “intensiva” e “exigente” entre duas entidades criativas tão diferentes, mas ambas conhecidas “pela sua atenção aos detalhes”.
UM EPISÓDIO “LUXUOSO” No episódio, Homer escreve para a marca: “Cara Balun, Balloon, Baleen, Balenciaga-ga”, esforça-se para pronunciar o nome. A intenção é surpreender Marge no dia do seu aniversário, já que a sua esposa sempre sonhou em possuir alguma coisa da casa de moda espanhola. E, apesar da equipa receber o e-mail com alguma admiração, e algum “desprezo” pelo pedido que o acompanha (“a peça mais barata que tiverem”), cumpre o seu pedido. Um vestido de 19 mil dólares chega à casa da família e Marge não perde tempo e veste-o para poder aproveitar todos os minutos possíveis (o preço da peça é alto e terá de devolver o vestido verde caqui o quanto antes). Após uma sequência de episódios onde Homer tenta proteger o vestido ao máximo, para que nada lhe aconteça, os trabalhadores da Balenciaga recebem o vestido de volta com a nota: “Obrigada! Recordar-me-ei sempre destes 30 minutos onde me senti um pouco especial”. De volta à Europa, o diretor artístico da Balenciaga, Demna Gvasalia, considera essa nota “uma das coisas mais especiais que já ouviu na vida”. Decide então viajar para Springfield, “resgatar” os “privados de estilo” (pessoas comuns) e convidá-los para desfilar as suas roupas em Paris, explicando que quer “que o mundo veja pessoas reais”. Assim, perante o olhar atento de convidados como Anna Wintour, Kim Kardashian e Kanye West, as personagens da série televisiva apresentam a coleção da marca para a primavera/verão de 2022. Dos conjuntos pretos ao famoso puffer jacket vermelho usado por Homer Simpson, o destaque vai para Marge que fechou o desfile envergando um glorioso vestido dourado ao som de La Vie en Rose.
O PROCESSO CRIATIVO A colaboração começou em abril de 2020, quando Gvasalia enviou ao criador de Simpsons, Matt Groening, um e-mail sobre a sua vontade em trabalharem juntos. Gvasalia, com 40 anos, que nasceu na Geórgia e assistiu ao programa quando era criança, disse que a ideia “lhe surgiu durante o primeiro confinamento em 2020”. O diretor artístico é já conhecido pela sua tendência em inserir Balenciaga nas tendências do mercado de massa: sob a sua direção, a marca tem colaborado com outras sensações americanas, como os Crocs e o jogo Fortnite. “Sempre adorei o humor irónico, o romance e a charmosa ingenuidade da série”, afirmou o estilista ao The New York Times. Contudo, esse não foi o caso de Al Jean, produtor executivo e escritor da série, que admitiu ter sido obrigado a pesquisar na Wikipédia para perceber de que marca de moda é que se tratava Balenciaga.
Segundo Jean, Gvasalia “fez contribuições específicas para o argumento”, contou. Por exemplo, o episódio termina com Homer a abraçar-se a Marge, enquanto canta a famosa música francesa La Mer, num barco de festa pós-show no Sena. Mas Gvasalia queria que existisse uma última piada… Pediu então que a jaqueta do pai da família fosse incendiada por um francês que fumava um charuto junto dele. Jean sugeriu que Anna Wintour, que havia aparecido na primeira fila do desfile, tentasse apagar o fogo com champanhe caro, que Homer tenta beber.
“Fomos definitivamente uma boa equipa para garantir que tudo estivesse perfeito”, continuou. “Desde o The Simpsons Movie, esta foi a coisa mais difícil que a equipa de animação teve de fazer”. Silverman, que dirigiu o filme de 2007, acrescentou que o maior desafio era conseguir a “precisão necessária nas roupas”, que “envolvia efeitos de pós-animação inventivos para capturar as texturas e movimentos distintos”, por exemplo, o visual de desfile de Marge: “Um ouro vestido de baile metálico”.
AS MAIORES DIFICULDADES NO PROCESSO CRIATIVO Balenciaga enviou à equipa de animação 15 looks destinados ao desfile final – todos baseados em designs dos últimos cinco anos. Mas colocá-los nos corpos desses personagens de desenho animado universalmente reconhecíveis não foi assim tão simples: “Foi difícil para nós capturar o equilíbrio da caricatura e a integridade das roupas”, disse Silverman. “Estamos a traduzir a aparência de roupas reais, designs reais em personagens que não têm proporções humanas”, elucidou. Silverman, estudou ainda a filmagem da passarela para descobrir o é que o próprio público deveria vestir e como é que a iluminação deveria atingir a passarela.
O argumento também teve que capturar o “enormíssimo e particular mundo da moda de luxo’’ e o lugar da Balenciaga nesse universo – algo que não pode ser aprendido na Wikipédia. Jean revelou que, além do curso intensivo em Balenciaga no início do ano, assistiu à série da Netflix sobre Halston, estilista americano que alcançou fama internacional na década de 1970 e que era um grande fã de Balenciaga, o ajudou a entender “a cultura excessiva e perene da moda”.
Quase todos os personagens presentes no episódio são baseados em pessoas e animais reais: o marido de Gvasalia, Loïk Gomez, e os seus dois cães; a diretora de criação, Martina Tiefenthaler; e os trabalhadores do ateliê de Balenciaga que terminam a coleção em pleno voo. Quanto à voz de Gvasalia, “tentámos convencê-lo a ser ele mesmo a fazê-lo, mas não quis”, lamentou Jean. Quando questionado pela razão de não o ter feito, o diretor artístico respondeu: “Eu não queria alinhar em nada ou dar sentido a nada. Eu só queria criar uma história visual icónica”, justificou.
As razões da aliança Mas, além da aposta de Balenciaga, o luxo está gradualmente a virar-se para uma “obsessão por desenhos animados”. “Uma das maiores lutas no mundo da moda é inovar. A moda pede inovação!”, frisou ao i Manuel Serrão, CEO da Associação Seletiva Moda. “A Balenciaga conseguiu encontrar uma boa forma de o fazer, desafiou-se, inovou e isso é meio caminho andado para uma boa recetividade por parte dos públicos. É uma aposta que muitos desfiles têm feito”, elucidou.
Mas se a estratégia da marca espanhola foi, entre outras motivações, “colocar o seu produto exclusivo num novo ambiente, neste caso no universo dos Simpsons”, as de outras marcas respondem a uma motivação “menos ambiciosas”: a Loewe, casa de moda de luxo espanhola especializada em artigos de couro, roupas, perfumes e outros acessórios de moda, lançou uma coleção de vestuário e acessórios com os personagens do personagem principal do filme japonês O Meu Vizinho Totoro (anteriormente a marca já tinha apostado na imagem do Dumbo, elefante da Disney): “Representa a união dos nossos valores mais importantes: fantasia, natureza e amor pelo feito à mão”, disse o diretor artístico da empresa, Jonathan Anderson, no comunicado de pré-lançamento. Para inaugurar o Ano Novo Chinês, em fevereiro passado, a Gucci (que também colaborou com a Disney em edições anteriores) fez o mesmo com Doraemon: uma coleção de vestuários e acessórios que serviu de argumento para comemorar os 50 anos do gato cósmico e do centenário da casa italiana. No outono passado, a Longchamp, empresa francesa de artigos de couro de luxo, carimbou a sua icónica bolsa “Le Pliage” com personagens Pokémon, ao mesmo tempo que criou uma aplicação para baixar a peça em formato virtual, incluindo-a no jogo.
“Acho que é uma tarefa de redefinição e uma vontade de conciliar a moda com o passar do tempo e com as mudanças que ele nos traz. Tem muito haver com as mudanças nas necessidades do setor. É uma forma de nos aproximarmos às novas gerações. Estamos numa época de redefinição, redefinir aquilo que são ou não as cordenadas da moda”, explicou ao telefone o estilista Isidro Paiva, acrescentando que não estamos diante de um fenómeno recente: “Isto não é recente, nós é que agora achamos que estamos a descobrir a pólvora quando ela já existia, nós apenas o estamos a adaptar às novas sociedades. Eu achei curioso porque eu já tinha feito isso em 2016, com a cara da Marge Simpson a chorar. Já tinha de alguma maneira antecipado e agora eles pegaram nisso”, revelou.
Quais as reais razões por trás desta aposta do mundo do luxo no mundo mágico dos desenhos animados? Além do seu merchandising movimentar milhões, quererão as marcas de luxo realmente se aproximar da geração Z? Quererão, por outro lado, copiar a dinâmica do marketing em torno da moda urbana? Quererão associar-se a personagens da cultura popular como reivindicação? Ou terá tido a iniciativa a intenção de desafiar a seriedade da moda ou as noções de luxo do público? Aquilo que se sabe é que a Semana da Moda de Paris 2022, viu as palmas, os sussurros e a música que a caracterizam, substituídos por uma boa dose de diversão.