Ainda nem conseguimos resolver de vez a pandemia, e já temos que nos preocupar com uma crise energética. Um pouco por todo o planeta, o preço dos combustíveis está na ordem do dia, teme-se escassez de energia, sobretudo agora que se aproxima o inverno, e com isso vem inflação. Parece inevitável que com isso venha contestação e instabilidade política – qual será o resultado, num momento em que ainda tentávamos recuperar após anos a entrar e sair de confinamento, só o tempo dirá.
Há vários motivos que podem explicar esta crise, desde o súbito aumento no consumo energético com a recuperação após a pandemia, até problemas nas cadeias de abastecimento. Contudo, há um fator explicativo que é praticamente consensual. «Muito do mundo parou de investir nos combustíveis fósseis (por boas razões), o que levou a menos fornecimento», notou o jornalista Fareed Zakaria, na sua coluna no Washington Post. «Mas não temos energia verde suficiente para substituir os combustíveis fósseis. Teremos, mas não hoje».
Coletes amarelos
Caso o mundo tivesse esquecido o potencial que a subida dos preços dos combustíveis tem para causar contestação, em França voltaram-se a ouvir apelos para «voltar às retundas», vestindo colete amarelo. Não é esperado que estas mobilizações tenham a mesma a escala massiva que se viu no final de 2018, mas a raiva começa a ser cada vez mais notória nas redes sociais, avançou o Local France.
Já da última vez fora a subida do preço dos combustíveis que incendiou os protestos, que rapidamente evoluíram, somando-se outras exigências mais ambiciosas, como a subida do salário mínimo ou o regresso do imposto sobre grandes fortunas.
Milhões de franceses saíram à rua, por vezes de forma caótica e violenta. Depararam-se com uma brutal repressão policial, recorrendo a gás lacrimogéneo, disparos indiscriminados de balas de borracha – em particular as infames LBD, que atiram balas do tamanho de uma bola de golfe, que já cegaram 24 pessoas, arrancaram cinco mãos e causaram 315 ferimentos cranianos, segundo as contas do Médiapart – e cargas, sendo frequentemente filmados agentes a espancar manifestantes caídos no chão.
O Presidente Emmanuel Macron, cuja taxa de popularidade caiu a pique nesses tempos, chegando aos 67% de desaprovação em dezembro de 2018, segundo a Ipsos, claramente não quer uma segunda dose – o seu Governo já anunciou que manterá um teto máximo para o gás de consumo doméstico até abril do próximo ano, bem como um vale de cem euros aos franceses com rendimentos mais baixos para ajudar a compensar o aumento do custo dos combustíveis.
Estes tipos de medidas podem parecer um penso rápido sobre uma ferida profunda, mas não há muito mais que os Governos europeus possam fazer. O continente continua a depender de energia vinda de fora, como gás natural vindo da Rússia, operando num mercado altamente liberalizado. As opções que estão em cima da mesa para controlar os preços são sobretudo subsídios, como em França, ou cortes nos impostos, como se exige em Portugal (ver páginas 52-55)
Países produtores
Esta súbita crise poderia ser vista como uma benesse para grandes produtores de energia fóssil. No entanto, nem todos estão a condições de aproveitar esta oportunidade comercial.
No caso da Rússia, está a reservar cada vez mais da sua produção de gás natural para consumo interno – declaradamente com o propósito de prevenir uma eventual escassez, ainda que as declarações do embaixador russo para a Europa, Vladimir Chizhov, citado pelo Financial Times, de que o assunto se resolveria rapidamente se a UE deixasse de ver o Kremlin como «adversário» só ajudem à acusação de que os russos estão a usar o gás natural como arma de arremesso.
Já Angola, que enfrenta uma dura crise económica, bem precisava de uma subida no preço do petróleo. Mas os impactos positivos disso deverão ser minimizados pela quebra na produção petrolífera angolana, avaliou Pedro Domingos Godinho, um empresário veterano deste setor, à Lusa. Notando que essa quebra «se deve à falta de investimentos no setor desde 2014».
De facto, Angola sempre teve uma relação muito particular com o seu petróleo. Se durante muitos anos manteve preços baixíssimos, como seria de esperar num país produtor, também sofreu convulsão devido ao preço dos combustíveis. Ainda no início de 2016 a fúria com isso era enorme, tendo o preço da gasolina saltado de 115 para 160 kwanzas (à época o equivalente a passar de 0,78 euros para um euro) e o litro de gasóleo da Sonangol ficado a 135 kwanzas em vez de 90 (então seria passar de 0,61 euros para 0,91 euros), causando um aumento imediato nos preços de bens essenciais, bem como protestos generalizados, mas sobretudo em setores com os taxistas. Certamente não terá
Isto tudo porque o subsídio estatal ao combustível era financiado pelo dinheiro da venda de crude, notou a DW na altura. Ou seja, paradoxalmente, quanto mais barato o crude, mais caro o combustível em Angola.
Tragédia
Se lidar com uma crise energética é complicado para os países europeus ou para os EUA, imagine-se o que será para o Líbano, que enfrenta uma das maiores crises económicas alguma vez registada na história moderna.
Ainda a semana passada uma professora libanesa de 29 anos se queixou ao Nascer do SOL que «Trinta dólares dá para comprar uns quarenta litros de gasolina para o teu carro». Desde então a situação ficou pior, durante esta semana o preço dos combustíveis subiu mais uns 25%, segundo a Reuters, levando taxistas a bloquear a Praça dos Mártires, uma das principais artérias de Beirute. E, no meio do desespero que se vive no país, qualquer fagulha pode despoletar o pior – na semana passada uma manifestação de apoiantes do Hezbollah e do Amal, dois movimentos xiitas, foi alvo de fogo de sniper, desencadeando uma verdadeira batalha, com troca de fogo de metralhadora e de lança-rockets.
Loucura no ocidente
Até entre líderes europeus a crise energética está a causar instabilidade. Boa parte dos países do sul da Europa – sobretudo a Grécia, Espanha, França – estão a virar-se contra os países mais ricos do norte, avançou a Bloomberg, sendo que os primeiros querem apostar em medidas como a compra conjunta de gás natural, que ficou quase 500% mais caro, enquanto os segundos vêm-no como um ataque à agenda de transição energética europeia.
Já nos Estados Unidos a grande preocupação é mesmo o preço da gasolina, que subiu mais de 50% só no último ano. É uma sensação que faz lembrar os anos 1970, lê-mos uma e outra vez na imprensa americana. Trata-se de uma referência às sucessivas crises petrolíferas, em 1973 e 1979. Primeiro quando o mundo árabe cortou o fluxo de petróleo aos países ocidentais, incluindo Portugal, como vingança pelo apoio a Israel durante a guerra do Yom Kippur, levando o preço do barril quase a triplicar. Depois, com a revolução islâmica no Irão, seguida da invasão do Irão pelo Iraque, causando uma quebra brutal na produção petrolífera iraniana.
A questão é que desta vez a estratégia americana é particularmente bizarra, constatou Fareed Zakaria. «É quase absurdo», constatou o jornalista, lembrando que a Administração Biden, enquanto mantém a postura de não apostar nos combustíveis fósseis em solo americano, por motivos ambientais, vai implorando à OPEC [Organização dos Países Exportadores de Petróleo] que aumente a produção, para evitar a subida dos preços.
«Por outras palavras, os EUA estão a desencorajar os seus próprios produtores de petróleo e gás de aumentar a produção enquanto pedem a países árabes ’fura baby, fura», escreveu Zakaria.