Na sociedade em que vivemos, está instalado desde há muito aquilo a que vulgarmente se chama o ‘salve-se quem puder’, isto é, cada um vai-se governando conforme pode e faz o que quer sem respeito pelos outros, ultrapassando, se for preciso, as regras em vigor.
Já lá vai o tempo em que o relacionamento entre as pessoas obedecia a normas de conduta que ninguém punha em causa e que eram aceites sem qualquer contestação. Não se pedia nada sem ser ‘por favor’ e no fim o ‘muito obrigado’ não podia faltar. Também toda a carta tinha resposta e o respeito pelos mais velhos era um ponto de honra. E por aí fora. Hoje, os tempos são outros, e tudo isso pertence ao passado. Deixou de se pedir ‘por favor’, deixou de se agradecer, já não se escrevem cartas e quando se escrevem nem resposta têm. No tratamento entre as pessoas deixou de haver qualquer cerimónia e instalou-se o ‘você’, que dá para tudo e parece ter vindo para ficar.
Na minha área também se verificaram mudanças de mentalidade e de comportamento.
Antigamente havia até a cadeira de Deontologia Médica, que definia precisamente como devia ser o nosso procedimento médico e o relacionamento entre colegas; mas hoje deixou de fazer sentido e passou a apostar-se noutras áreas.
De igual modo, nesta profissão, a cordialidade e a solidariedade deram lugar à competitividade desmedida e à luta desenfreada pelo primeiro lugar, custe o que custar.
Tudo isto vem a propósito do momento que estamos a viver no setor. O parecer e a decisão do médico eram antigamente sempre respeitados. Consultava-se o médico, prestava-se toda a atenção às suas indicações e cumpriam-se à risca os tratamentos prescritos.
Agora tudo é diferente. O parecer médico é cada vez mais posto em causa; a procura de uma segunda opinião passou a ser uma constante, e, quanto a manter o mesmo clínico ao longo da vida, é já uma raridade.
Vejam-se os anúncios televisivos promovendo fármacos, que não são mais do que um convite explícito à automedicação. Os testes rápidos de covid efetuados em anexos à porta das farmácias, onde qualquer pessoa pode recorrer as vezes que quiser (visto serem gratuitos) e tirar as conclusões que entender, sem consultar sequer o médico assistente. Perguntei há dias, num desses anexos, se era necessária requisição médica e a funcionária respondeu-me de imediato: «Não, de modo algum, não se meta com eles…». Perante a minha admiração, foi mais longe e disse: «Há muita gente que vem aqui todos os dias fazer um teste!». Isto fala por si.
No que diz respeito a cerimónias de casamento, o panorama é semelhante.
Não obstante a DGS informar que apenas o certificado digital de vacinação é necessário, a maior parte das organizações exige a todos os participantes um teste efetuado na véspera ou na antevéspera do evento. É claro que, nestas condições, a segurança passa a ser máxima; mas, a aceitar-se esta exigência, não se compreende por que não é ditada superiormente.
Em suma: cada qual faz como quer. Não faltará muito para não serem precisos médicos. A saúde está em autogestão.
Razão tinha a funcionária do anexo aconselhando-me a não recorrer aos profissionais da minha classe.
Ao que se chegou!
Não é por acaso que, ultimamente, as pessoas aparecem nas consultas não para serem observadas mas para pedirem aos médicos o que muito bem entendem, como quem vai ao supermercado abastecer-se. E ninguém se queixe, pois o exemplo vem de cima. É que, nas casinhas transformadas em minilaboratórios ao pé das farmácias, podia ler-se: «Faça regularmente um teste» com a «concordância» do SNS, DGS, Ministério da Saúde, Instituto Ricardo Jorge…
Cada um interprete como quiser essa recomendação. E estes testes não têm custos? Quem os paga? Há dinheiro suficiente para isso? Já não se fala na dívida da Saúde?
Uma doente dizia-me há poucos dias: «Doutor, estou muito confusa com o que vejo à minha volta», ao que eu respondi: «Também eu, minha senhora, e ainda para mais sou médico!».
A realidade é esta. Bateu-se no fundo. A saúde está mesmo em autogestão.