Ou uma reforma a sério, como os políticos no Ocidente, reféns do grande poder económico, não querem ou não têm coragem de fazer?
Na China, o político não teme o capital, comanda-o. O Courrier International reporta que o mundo se preocupa. Que mundo? Os comentadores excitam-se. Entre nós, regra geral, monocórdicos, a debitarem desconhecimento, a confundirem a China real com a que desejam.
Respigo hoje highlights do que tratarei nos próximos artigos.
1. Xi, um novo Mao? Disparate! O que os dirigentes chineses mais temem é um novo Mao, de que todos foram vítimas. A China de hoje nada tem que ver com a daquele tempo! Xi é o rosto escolhido para protagonizar interna e externamente o previsto há muito. As medidas agora em curso foram já anunciadas pelo anterior Presidente, Hu Jintao. Até lhes foi dado um nome, como gostam de fazer: Yi si.
2. As referências de Xi às «virtudes e valores tradicionais da civilização chinesa», confucionismo, patriotismo, visam reforçar as fontes de legitimidade do regime. O ‘marxismo’ (sinisado, como ali tudo foi sempre) funciona como um ideal, ainda impregnado em milhões de chineses. Preenche a função que no passado a religião desempenhava no Ocidente.
3. A atual regulação musculada será excessiva e pode afetar o crescimento? Justifica-se a questão, mas na China não se faz nada sem avaliar a relação custo/benefício. E, se constatassem, emendariam a mão. Surgirão reações no XX Congresso do P’C’C em 2022?
4. «Só o socialismo de características chinesas pode desenvolver a China», disse Xi. Mas podia dizer o mesmo doutra maneira: «Só o capitalismo de características chinesas pode desenvolver China». O capitalismo deles não é o mesmo que o nosso.
5. O regime político da China tem um forte apoio popular, como indicam os inquéritos realizados por instituições internacionais. Mas quanto à classe média? Tornar-se-á um ‘agente de democratização’, como sugere a teoria da modernização?
As preferências políticas não se transformam facilmente em ‘comportamento’, ainda menos com o aparelho de segurança tão presente, num contexto de desbragadas interferências do exterior. E com o combate decidido à corrupção a ter como alvo o partido e a passar pelo reforço da disciplina política e ideológica.
O apoio ao regime e a aspiração pelos valores da nossa democracia podem coexistir. O desafio para o P’C’C é manter esse desiderato, continuando a assegurar não apenas o crescimento do poder de compra da classe média mas a alargar a todos um quinhão na prosperidade. Como só o atual modelo parece poder conseguir.
6. O sufrágio universal para eleger a cúpula é algo que 90% dos chineses não reivindicam. O modelo político desejado continua a ser o de uma ‘democracia de mérito’. Assente no ‘mandarinato’, um modelo que vem dos Tang e dos Han, hoje realizado com meios diferentes, claro. Formação, exigência na avaliação, ascensão ao poder aberta a todas as classes sociais.
As aspirações e exigências da nova classe média, dos agregados familiares enriquecidos, dos empreendedores, são: estado de direito, que tem avançado e está prometido; reforço da proteção da propriedade privada. Hoje os cidadãos chineses têm maior consciência dos seus direitos (o Parlamento adotou em 2007 uma lei que estabelece o direito à propriedade privada, exceto da terra, que continua a ser propriedade do Estado). Mas o processo de liberalização tem sido mais lento.
7. Desde há vários meses que os reguladores da finança, nomeadamente a Comissão para a Estabilidade Financeira e o Desenvolvimento, dirigida por Liu He, vice-primeiro-ministro, tinham como alvo o setor da fintech. A Administração está a agir, antes que esses grupos se tornem incontroláveis (como no Ocidente aconteceu). O risco – acelerado, como tudo na China, ávida de empreender e enriquecer – era o Estado perder o controlo completo dos financiamentos, que podia culminar em algo similar aos subprimes em 2007-08. Ameaça idêntica à que fragiliza no Ocidente a democracia-liberal, o mercado e o capitalismo produtivo, que trouxeram a prosperidade ao mundo.
8. Outra preocupação é a influência dos gigantes da tecnologia, acusados de «concorrência desleal, corrupção da sociedade e acesso irrestrito a dados pessoais».
Jack Ma e outros reagiram, dizendo que as novas medidas limitavam a rendibilidade e o crescimento. O seu discurso desastroso de 24 de outubro 2020 foi visto como uma tentativa presunçosa de forçar o poder. E Ma foi reconduzido ao objetivo social do modelo económico-político.
«Não há uma chamada ‘era Jack Ma’, mas tão-só um Jack Ma na era atual», diria lapidarmente o Diário do Povo.
9. «Primeiro têm de enriquecer alguns», proclamara Deng com clareza. Mas todos têm de ter na riqueza o seu quinhão. Não lhes chegou tirarem 900 milhões de chineses da pobreza, como todas as democracias juntas não conseguiram tirar.
A Europa queixa-se do poder dos Gafa, Estados dentro das nações. A China faz o que a Europa não é capaz de fazer: uma ação «que se assemelha mais a uma intervenção antitrust à americana do que a um processo estalinista»…