Por Sofia Aureliano
À hora de publicação deste artigo, ainda não é conhecido o voto dos partidos com assento parlamentar na discussão na generalidade do Orçamento do Estado para 2022. Como até ao lavar dos cestos é a vindima, assegura a sabedoria popular, ficamos com algumas horas para avaliar cenários, fazer conjeturas e esmiuçar as diferentes hipóteses em cima da mesa.
Num primeiro cenário – aquele que é agora o mais provável mas não necessariamente o melhor – o Orçamento do Estado é chumbado e o Presidente da República dissolverá o Parlamento e convocará eleições antecipadas. Neste enquadramento, há algumas variáveis a considerar. Será que António Costa se manterá em funções num governo de gestão, correndo o risco de enfrentar mais um retrocesso da pandemia e o agravamento imediato da crise social, enquanto tenta fazer campanha para continuar a ser primeiro-ministro? Se se demitisse, poderia ser interpretado como estando a bater com a porta e a desresponsabilizar-se num momento mais difícil. Contudo, a tragédia grega que o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista levaram a palco nas últimas semanas dá-lhe margem para fazer os amuos que entender. Provavelmente, sem consequências negativas para si próprio. Pelo contrário, ainda ganharia uns votos por mostrar indignação com a atitude ilógica e irresponsável dos partidos de esquerda que ignoraram os interesses do país. Caso queira fazer o número, António Costa tem margem para o fazer. Oferecida, de bandeja, pelo BE e PCP.
Nesta conjuntura, há ainda que avaliar em que condições cada partido vai a votos e se o PS terá oposição. Eleições antecipadas, neste momento de incerteza política no seio do Partido Social Democrata, não favorecem uma escolha óbvia. Porque as bases e os militantes têm a responsabilidade de escolher um líder social-democrata e a melhor opção para disputar as eleições nacionais. Não se trata de experimentar uma mudança de estilo ou uma oposição diferente. Trata-se de escolher o próximo candidato social-democrata a primeiro-ministro. Um homem que consiga vencer o PS e conquistar o número máximo de votos possível, de preferência uma maioria absoluta. Uma nuance que muda tudo. Será que Rui Rio já deu provas de conseguir este feito? E Paulo Rangel estará preparado para ganhar o país?
Diria que eleições antecipadas não beneficiam a mudança. A prossecução do projeto já instalado poderá ser entendida como garantia de maior estabilidade interna e, com o atropelo de atos eleitorais dentro e fora do partido, Rui Rio poderá sair reforçado, com Paulo Rangel a ter de disputar dois adversários de uma só leva. Não se avizinha tarefa fácil, mas o prémio vale bem o esforço.
Na hipótese de nenhum dos dois grandes partidos conseguir uma maioria absoluta, consideremos os restantes elencos em equação. BE e PCP vão perder assentos parlamentares e, apesar de um eventual reforço de deputados do PS poder permitir uma nova edição da gerigonça, depois de uma dissolução parlamentar, não há espaço para segundas oportunidades. O divórcio parece definitivo. Resta ao PS o PAN, com quem tem dado alguns passos sólidos no caminho do entendimento. Mas que percentagem de votos terá o Pessoas, Animais, Natureza num próximo ato eleitoral? Não nos esqueçamos do retrocesso que o partido tem tido desde as eleições de 2015. É pouco provável que chegue para dar uma mãozinha ao PS num governo de acordo pós-eleitoral.
Em opção, o PSD pode conseguir formar uma gerigonça à direita, quer ganhe ou não as eleições – graças ao PS, a vitória eleitoral passou a ser um pormenor de pouca dimensão. Mas com quem? O CDS-PP é o parceiro óbvio, já nem sendo questionável, independentemente do candidato a primeiro-ministro que o PSD apresentar. Só que este partido está ao nível do PAN e do simbolismo da ajuda que poderá dar num quadro de governação. Demasiado exígua.
O Iniciativa Liberal poderá ter melhor resultado do que nos anos anteriores, mas aqui reside um paradoxo interessante: o IL terá mais votos com Rui Rio candidato pelo PSD do que com Paulo Rangel (que conquistará mais eleitorado liberal). Mas seria com Paulo Rangel que mais facilmente o IL negociaria um acordo de coligação, pela proximidade ideológica. O fundamental é que fique claro que esta porta não deve ser fechada. Qualquer que seja o candidato social-democrata.
Finalmente, teremos o Chega, que acredito que será o partido que mais irá crescer nas próximas eleições legislativas. Lamentavelmente. E esta é uma pedra no sapato de qualquer projeto de governo, mas traduz o estado real do país, a descrença do eleitorado e a insatisfação com a classe política. Não há tempo para desconstruir a imagem negativa que anos e anos de descontentamento já consolidaram. Nem haverá tempo para explicar aos abstencionistas que o melhor manifesto é o voto. Porque quem vota no Chega vai efetivamente às urnas. Quem não quer ver o Chega a crescer, não vai. E, por inação, ninguém consegue a mudança. Lembremo-nos que de nada valerá chorar sobre o leite derramado.
O cenário que falta analisar é o de ressurreição de um resquício de gerigonça, eventualmente com o BE a viabilizar o Orçamento na generalidade, resultado de uma barganha insípida e frouxa. A verdade é que o PCP surpreendeu todos com a atitude ilógica de se atirar para um precipício eleitoral, deixando os seus eleitores mais resistentes ora confusos, ora revoltados. O BE foi, porventura, o mais surpreendido e o mais prejudicado de todos, porque ficou inexoravelmente com o menino nas mãos.
Depois do anúncio do PCP, o BE não parou de pôr a mão no ar a gritar a Costa “estou aqui, estou aqui”. Depois de esticar a corda até quase partir, fala agora de disponibilidade total para negociar, mesmo até aos últimos segundos. Basta o governo querer. Uma subjugação deprimente de quem sabe que tem muito a perder indo agora a votos.
António Costa vai fazer as contas e tirar o pulso ao país. Se achar que poderá ganhar mais em eleições (com o empurrãozinho da esquerda demissionária), vai continuar a ignorar estoicamente o BE. Caso ache que ainda precisa de um tempo para conseguir uma maioria absoluta isolada e se libertar dos penduras, cede ao caderno de encargos do Bloco, numa qualquer medida poucochinha. Uma em nove é, para já, mais do que suficiente.
Tratando-se este de um exercício de simulação só ganhamos em pôr todos os cenários na mesa. Mesmo aqueles mais improváveis. Por exemplo: imaginemos que Rui Rio, enquanto ainda é líder do PSD, decidia viabilizar o OE com uma abstenção. Os argumentos poderiam ser o interesse nacional, a execução do PRR e a credibilidade externa do país. Entalava a esquerda e o governo, obrigando o PS a protelar um casamento já esfrangalhado. Seria uma reviravolta interessante, correndo o risco de não agradar ao eleitorado social-democrata. Provavelmente até abriria uma rutura na bancada laranja, com deputados a manter o voto contra. Mas para o governo fazer passar o OE bastam dez votos de abstenção. E cinco já conseguiu com o PAN e as deputadas não inscritas.
Dependendo da narrativa, esta hipótese poderia ter o efeito perverso de dar espaço de manobra a Paulo Rangel, o candidato da diferença, ou o de consolidar a liderança de Rui Rio, a garantia de estabilidade necessária para o país. As consequências para o PSD submergem na incerteza.
A verdade é que Portugal precisa de um Orçamento aprovado o quanto antes. Muitos já estavam à espera dos aumentos previstos para janeiro e não querem ter de esperar para os ter. Ou correr o risco de os planos serem alterados. E já temos as agências de rating à espreita, prontas para fazer os ajustamentos necessários para servir de barómetro aos investidores internacionais. Aproxima-se a passos largos a instalação de um guião que já conhecemos. E que não queremos ver instalado, porque já vimos este filme.
Qualquer que seja o desfecho, pode-se concluir, desde já, que a gerigonça foi um ato falhado. E que se antecipam meses renhidos, de “vale tudo” a “tudo ou nada”. Ao estilo shakespeariano de “o meu reino por um cavalo”.
Os dados estão lançados. Façam as vossas apostas. E que ganhe Portugal!