Voltou o trânsito. A segunda circular, nos dois sentidos, e os acessos à ponte da Arrábida voltaram a ser artérias cheias de carros, com direito a grandes engarrafamentos nas horas de ponta e alertas na rádio. Depois dos últimos dois anos, normal é bom. Quase que gostamos do trânsito, quase. O que não sendo normal, faz sentido à luz de um novo normal.
O novo normal é particularmente desafiante para quem queira desenhar estratégias de médio e longo prazo. Se a imprevisibilidade faz parte da natureza humana e é uma condicionante de qualquer negócio, hoje a volatilidade de opiniões e de condições aumenta substancialmente o risco de qualquer decisão. Hoje conhecemos melhor as marcas que gravitam à nossa volta, recompensando – e comprando – as que sentimos que contribuem para um bem maior, comum. Simultaneamente, reduzimos a tolerância a promessas dissonantes dos comportamentos, se nunca foi alta, é agora mais baixa do que nunca. Enquanto consumidores mais informados, fazemos escolhas mais conscientes.
Com o conhecimento, também aumenta o escrutínio, investigamos e comparamos opções equivalentes com mais facilidade. Avaliamos uma empresa, os seus stakeholders, produtos e serviços, atividades passadas e cadeia de valor, praticamente tudo o que quisermos, sem sair de casa. Nós e os outros, qualquer um o pode fazer.
O fenómeno do especialista instantâneo traz uma recompensa individual elevada e imediata. Com meia dúzia de cliques aprendemos termos dos quais nunca ouvimos falar em 15 anos de escola, relacionamos fatores e fenómenos que até então nos eram completamente desconhecidos. Quantos já não ouviram um discurso sobre terroir, castas e barris de carvalho francês da boca de alguém que nunca pisou uma uva? Egos e exibicionismo à parte, gostamos de conhecer o que temos pela frente, seja a origem dos frescos ou a dieta do frango que nos vai chegar ao prato. Mas por sabermos mais do que alguma vez imaginámos sobre um determinado tema, não significa que saibamos muito e ainda menos que nos possamos afirmar como especialistas.
Olhando à nossa volta, é preocupante o número de especialistas que todos os dias aparecem nas mais variadas áreas. E conceituados. Este foi, é, o paradigma em maior transformação nos tempos que correm: um especialista deixou de ser alguém que sabe muito sobre um determinado tema, mas antes uma pessoa que consegue disseminar de forma credível uma mensagem junto de uma vasta audiência. Misturam-se dois termos, especialistas e influenciadores, radicalmente diferentes na sua origem mas muito semelhantes no seu propósito.
Especialistas e influencers são ferramentas comerciais, ou pelo menos, utilizados como tal, nas dimensões em que nos relacionamos com eles. Enquanto os especialistas do telejornal prestam um serviço público, pelo menos útil, o tempo de antena que têm deve-se à sua capacidade de venderem um conteúdo, dando-lhe valor e dimensão através da sua opinião. Já os influencers chegam em nome (e em muito casos por mérito) próprio a muita gente, sendo a dimensão e reação da sua rede de seguidores o principal valor que acrescentam a um tema.
É perigoso confundir especialistas e influencers. Nos meios digitais, sobretudo nas redes sociais, competência e credibilidade de um emissor são avaliadas por métricas como o número de seguidores ou de gostos atribuídos a um determinado conteúdo. Ou seja, pela sua popularidade e facilidade de comunicação. Quando a popularidade do emissor é a métrica para aferir a sua credibilidade da mensagem, corre-se o sério risco de tornar a mensagem inócua.
Por especialista entenda-se alguém completamente diferente, cuja propriedade numa determinada matéria é fruto de uma experiência diferente e mais profunda daquela que a maioria das outras pessoas tem. Podem ser fracos comunicadores e ter pouco alcance nas redes sociais, mas o que dizem tem um impacto duradouro e profundo. Verdadeiramente influente.
Fruto das muitas apostas que têm feito, as marcas correm o sério risco de se especializarem em influencers e deixarem de ser especialistas no que quer que seja ou embaixadoras de causas. O que, atendendo a uma maior capacidade de escrutínio e exigência de propósito e relevância, poderá criar sérias dificuldades na sua relação com os consumidores. Ao contrário das figuras públicas, que vendem a sua imagem a uma marca e gerem a relação na base de ‘todos os cuidados são poucos’, na relação com os influencers são as marcas que se entregam a um determinado perfil, junto do qual acham que devem estar. Mesmo tratando-se de quem não percebe nada do assunto. O que não sendo normal, se calhar faz todo o sentido à luz de um novo normal.
Senior Manager da Accenture Interactive