Os tempos em que descobrir ricos jazigos de petróleo ou gás natural garantia uma enxurrada de petrodólares já lá vão. A era dos combustíveis fósseis aproxima-se do fim, esperando-se que a procura de petróleo desacelere até a um pico por volta de 2030, algo essencial para a meta de não aquecermos o planeta mais do que 1,5ºC, ou pelo menos é isso que se tenta conseguir nesta COP26, em Glasgow (ver página 7). Quem arrisca ver a vida andar para trás são os famosos países emergentes, os gigantes adormecidos que se prometia acordarem este século, muitos com economias extremamente dependentes da extração de combustíveis fósseis. Se as economias pujantes dos BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – têm boas hipóteses de conseguir uma transição verde, países mais frágeis como Angola, Moçambique, Venezuela, Iraque ou Nigéria têm um caminho difícil pela frente.
À primeira vista, parece óbvio que estes países enfrentam uma tragédia, a longo prazo. Se até na industria petrolífera, conhecida por dar rápidos retornos, têm dificuldade em investir, quanto mais em setores que requerem investimentos a tão longo prazo quanto as energias verdes? Mas não vale a pena ser catastrofista, pelo menos quanto a Angola, diz Rui Santos Verde.
“A transição verde é algo muito implantado no Ocidente”, ressalva o professor do Centro de Estudos Africanos da Universidade de Oxford, diretor de investigação do CEDESA. “Em relação aos principais importadores de petróleo angolano, como é o caso da China, da Índia e outros países asiáticos, ainda precisam de crescer, vão precisar de petróleo”.
“A Índia e a China são um mar imenso. Não temos bem noção da efervescência que vai pela Ásia”, assegura Santos Verde. “Não podemos ser eurocêntricos, Temos de ver as coisas também da perspetiva do sul global”.
Se é verdade que a China avança a passos rápidos para se livrar da energia fóssil mais suja, o carvão, também não abdica de obter recursos para melhorar as condições de vida da sua população, quase um quinto da humanidade, e de ganhar pujança geopolítica. Os seus compromissos climáticos, atualizados a semana passada, rumo à COP26, implicam alcançar um pico de emissões de gases com efeito de estufa até 2030, chegando à neutralidade carbónica em 2060, uma mera década depois daquilo que prometem países desenvolvidos como Portugal. Entretanto, “a China precisa de tudo. Porque se não quer parar o seu crescimento precisa de petróleo, sol, vento”, diz Santos Verde. “Aliás, esta subida do preço do petróleo a que estamos a assistir surge em parte devido às compras aceleradas de petróleo que a China fez depois do pior da covid-19”.
Pelo meio, há a possibilidade de Angola investir gradualmente no futuro verde. Talvez não ao nível de países exportadores de petróleo como a Arábia Saudita, que lançou o programa Visão 2030, sob liderança do autoritário príncipe Mohammed bin Salman, que promete acabar com o vício em combustíveis fósseis, diversificar a economia, sonhando tornar-se o maior produtor de hidrogénio azul, exportando uns quatro milhões de toneladas até 2030. Ou seja, dividindo gás natural em hidrogénio mais dióxido de carbono, captando este último e impedindo que vá parar à atmosfera.
“Tanto quanto sei, foi o exemplo da Arábia Saudita que alertou as autoridades angolanas para isso, que levantou a lebre. Claro que eles estão mais avançados, mas o MBS começou a trabalhar nisso há anos”, diz professor de Oxford. Com a diferença que, no que que diz respeito a uma eventual transição de Angola, muito do dinheiro terá de vir de fora – até o setor petrolífero sofre de subinvestimento crónico, dependendo de maquinaria velha, causando uma quebra de produção que nem permitiu aproveitar plenamente a recente subida dos preços.
O que vale é que há bastantes investidores interessados. Ainda o mês passado a petrolífera italiana Eni, a Sonangol e a Agência Nacional de Petróleo, Gás e Biocombustíveis (ANPG) angolana assinaram um acordo para apostar em agro biocombustíveis, descarbonização e transição energética – iniciando em paralelo a exploração petrolífera offshore em Cabaça Norte, após a descoberta de novas reservas. Para Santos Verde, o espanto é que a Galp, que está a levar a cabo um rápido processo de transição de empresa petrolífera para energética, não seja opção preferencial para a aposta verde da Sonangol, que até detém uma participação indireta na empresa portuguesa.
Há cada vez mais empresas de outros países a posicionarem-se no mercado energético verde dos países emergentes, considera Carla Fernandes, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-NOVA), especializada em energia e segurança. “É por uma questão de investimento, novas oportunidades. No caso angolano, o mercado africano é ótimo, está sempre em expansão”. E acrescenta: “Mas também porque, no caso do investimento chinês, as empresas de energias renováveis já não conseguiam ter capacidade, o próprio país limitou a sua produção interna, o setor estava sobrelotado. Por isso tiveram de ir para fora”.
“Associado a isso está a Belt and Road, que está a apostar na energia verde”, explica, referindo-se à também chamada Nova Rota da Seda, o maior projeto de infraestrutura da história, que planeia ligar Pequim a África e à Europa, através da Ásia Central e do mar, com uma rede de estradas, comboios de alta velocidade, portos e centrais elétricas.
Abundância e escassez Seja como for, certamente não será uma transição fácil para os chamados “petroestados” – conjunto de países que dependem quase inteiramente da produção de petróleo – à medida que passamos de uma era de constante escassez de petróleo e gás, logo, com preços elevados, para uma era de abundância, com enormes flutuações. A pandemia de covid-19, onde vimos uma quebra de 8,5% na procura de petróleo em 2020, “providenciou uma visão admonitória do futuro se os atuais esforços de diversificar as economias produtoras não funcionarem”, alertou um relatório recente da Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla inglesa).
No caso angolano, o aviso de alguma maneira foi escutado pelas suas elites e dirigentes políticos, “há umas luzes”, considera Rui Santos Verde. Se isso resultará em ação concreta é outra questão. Já Moçambique está numa situação mais complicada, tendo apostado tudo no projeto de extração de gás liquefeito da petrolífera francesa Total, que investiu 20 mil milhões de dólares (17,3 mil milhões de euros) – mais do que o PIB moçambicano – após a descoberta de reservas com mais de 13 milhões de toneladas de gás em Cabo Delgado. O problema é que eclodiu uma insurgência jiadista, que subitamente congelou todo o projeto.
Ou seja, “no fundo, Moçambique está a tentar ganhar a guerra no norte para depois voltar ao passado”, descreve o professor de Oxford. Mesmo tendo a vantagem do gás ser usado por países desenvolvidos como uma espécie de ponte entre as energias fósseis mais poluentes e as energias verdes, “Moçambique ainda não se consciencializou que tem de partir para outra”, alerta. “E esse é o primeiro passo, ter a noção que é preciso mudar de modelo económico”.
Já Carla Fernandes ressalva que “quando se analisa o mercado energético mundial é preciso ter em conta que há uma grande interdependência”. Ou seja, “há sempre consumidores e produtores novos a surgir, porque o mercado vai mudando”, continua. “A grande aposta da Europa continua a ser o consumo de gás. Se pensarmos que o seu grande fornecedor continua a ser a Rússia, o que não é considerado viável há anos, muitos países europeus estão à procura de outras fontes. Daí o papel de Moçambique”.
“A transição que estamos a viver é uma transição lenta, não é assim tão linear”, salienta Carla Fernandes. “Só há transições rápidas quando há uma crise muito grave, como quando houve a crise do petróleo de 1970”. Referia-se às sucessivas crises petrolíferas, em 1973 e 1979. Primeiro quando o mundo árabe cortou o fluxo de petróleo aos países ocidentais, como vingança pelo apoio a Israel na guerra do Yom Kippur. Depois, com a revolução islâmica no Irão, seguida da invasão do Irão pelo Iraque, causando uma quebra brutal na sua produção. “Aí, países como a França alteraram rapidamente para a energia nuclear”.
No entanto, “até as empresas petrolíferas mundiais e os países tradicionalmente produtores sabem que o paradigma vai mudar, mais tarde ou mais cedo, que é preciso apostar noutras energias”, acrescenta. Entretanto, os petroestados assistem, expectantes, vendo o preço do barril disparar e cair. A dívida média destes Estados subiu de 24% do PIB em 2018 para 46% em 2018, segundo o Carbon Tracker Initiative (CTI).
“Alguns dos países mais pobres dependentes do petróleo estão num completo turbilhão”, lembrou o analista Thijs Van de Graaf, citado pela New Statesman. O petróleo “é o fator central à volta do qual políticas económicas e domésticas foram estabelecidas”, explicou. “Olhe para a Líbia, Venezuela, Nigéria, Iraque. Este padrão pode alastrar a outros petroestados”, apelou, descrevendo a transição verde como “uma ameaça existencial para muitos destes países” – as projeções da Fitch Ratings até vêm Angola como um dos países em maior risco disso, a par do Iraque e da RD Congo.
Contudo, projeções são exatamente isso, projeções. É sempre difícil prever o futuro. Quando chegarmos a 2050, “se realmente os países atingirem a meta a que se propunham de descarbonização, se reduziram essa dependência, se o sistema for bem preparado, aí sim, podemos supor uma quebra do consumo de energias fósseis”, refere a investigadora que, como tal, aponta para uma “nova geopolítica da energia”.
E alerta: “Se houver uma alteração na aposta em combustíveis que não os fósseis, pode haver uma alteração total do mercado e das relações entre países. Podem começar a ganhar importância outros Estados, até economias emergentes, por causa dos minérios raros”, fundamentais para produzir painéis solares ou baterias. “Podem ter outras produções para compensar a perda de lucro. Depende tudo dos recursos que têm”.