Um dia destes uma grande amiga, que anda muitas vezes assoberbada de trabalho, dizia-me que não sabia se iria conseguir acabar o doutoramento no prazo estipulado. Com dois filhos pequenos, dois confinamentos e uma série de isolamentos, imagino que seja uma tarefa praticamente impossível, mas com algum desânimo desabafou: ‘É que eu não consigo trabalhar oito horas por dia…’ Ao que eu respondi: ‘Claro que não, nem ninguém devia trabalhar tanto tempo.’ ‘Mas há pessoas que trabalham muito mais do que isso.’ ‘Sim, encontrei várias em consulta e tantas outras fora dela muito prejudicadas por isso.’
Se antigamente muitos dos casos que chegavam às consultas de psicologia estavam relacionados com perdas ou questões amorosas, hoje em dia o trabalho é o grande despoletador do mal-estar nos adultos. Ao contrário do que se podia pensar, a industrialização e evolução tecnológica não nos libertou um pouco do trabalho, pelo contrário, cada vez se trabalha mais.
Por alguma razão passou a considerar-se natural a vida adulta ser sinónimo de trabalho, muitas vezes desde que se acorda até à hora de deitar. E com o teletrabalho ainda pior, há uma invasão da própria casa, quando devia haver uma divisão clara dos dois contextos. As pessoas precisam de espaço, de realizar desejos, de sonhar, de concretizar projetos, além de trabalhar. Precisam de estar com a família, de ser pais e filhos, casais, netos e avós, mas também de estar consigo próprios, de fazer aquilo de que gostam. Toda a gente considera natural e saudável colocar os filhos num desporto ou atividade que lhes dê prazer, deixá-los estar com os amigos, irem ao cinema, ao parque, o que for, mas já não se acha assim tão natural os adultos – sobretudo depois de serem pais – continuarem a fazer aquilo de que gostam. Não são só as obrigações do trabalho e da vida familiar que se impõem, mas parece que se dá uma certa abnegação do prazer. Tudo passa a ser escasso na vida adulta: o tempo com a família, o tempo para atividades prazerosas, para estar com os amigos, ou simplesmente para descansar. Só para o trabalho há tempo e até horas extraordinárias.
Não fomos feitos só para trabalhar, ou pelo menos não estaremos a viver em pleno se o fizermos. O tempo vai passando e uma série de coisas vão ficando também por fazer. Sozinhos e em grupo, enquanto pais ou filhos e sobretudo enquanto indivíduos. Há um espaço reservado ao prazer e ao lazer que vai sendo ocupado só com trabalho e obrigações. Não se devia trabalhar mais de seis horas por dia. A não ser que se goste muito do que se faz. E é por isso que há tanta gente que adoece e tantas outras pessoas que não chegam a adoecer mas que vivem a vida pela metade, sem acreditarem que teriam direito a muito mais.
Não é fácil mudar uma sociedade que parece organizada neste sentido. Mas talvez individualmente se possa tentar remar contra a corrente, encontrar um meio-termo e deixar de carregar a cruz da obrigação do trabalho a tempo inteiro dando espaço a tudo o resto a que temos direito. De outra forma nunca viveremos plenamente.