A crença infantil na verdade absoluta

Ora, a liberdade individual só adquire sentido na vida em comunidade e na relação com o Outro e com valores fundamentais, como a responsabilidade e a compaixão.

Por João Maurício Brás

Benjamin Costant distinguia a liberdade dos antigos da liberdade dos modernos. Hoje podemos falar da liberdade falsa dos contemporâneos, a ideia de liberdade individual absoluta, o direito ao egoísmo, a indiferença perante o outro, o individualismo hedonista e frívolo. 

Ayn Rand foi uma pensadora paradigmática dessa ideia. Dizia-nos que a felicidade do indivíduo é o objetivo final da moralidade. Essa premissa é um caminho para a amoralidade e para o relativismo cínico. No seu livro icónico A Revolta do Atlas encontramos John Galt, herói libertário, figura desprezível comparado com a ideia de ‘homem decente’. A apologia do egoísmo cínico, do interesse particular, da subjetividade como materializações da liberdade típica do homem contemporâneo é o suporte dessa ideologia terminal e triunfante do homem do século. Ora, a liberdade individual só adquire sentido na vida em comunidade e na relação com o Outro e com valores fundamentais, como a responsabilidade e a compaixão. A liberdade individual não pode ser confundida com cegueira egoísta ou tara egótica. A singularidade nada tem a ver com o triunfo do individualismo egocêntrico e do eu como centro do mundo.

Só o homem ético pode ser livre e esse está em extinção. O que temos é o relativista, o indivíduo atomizado e aniquilado pelos seus interesses particulares, o ser que alega ter direito a ter direitos, que transforma a sua subjetividade e caprichos em direitos e a quem tudo é devido. 

O homem hiperliberal (que decalca a sua ideia de liberdade a partir das dinâmicas do mercado) e o progressista que grita que cada um é o que lhe apetece, não são éticos, mas crianças imaturas e mimadas. A ideia que cada um deve viver sem qualquer interferência do outro e da comunidade e fazer o que quer e lhe apetece, não só é infantil como desestruturadora. É pueril a ideia de que cada um agindo no seu próprio interesse contribui para a harmonia geral. 

Esse livro de Ayn Rand e as suas teorias são um pastiche muito fraco de Nietzsche e da ideia demente do super-homem, da falsa emancipação: «O único objetivo do homem é o seu próprio interesse». «Ninguém se deve sacrificar pelos outros, nem pedir que se sacrifiquem por si», «pela minha vida e pelo meu amor, que jamais viverei por outro homem e nem pedirei a outro homem que viva por mim.». É «imoral colocar coisas como amizade e laços familiares acima do próprio trabalho produtivo». «A amizade, a vida familiar e os relacionamentos humanos não são primordiais na vida de um homem. Um homem que coloca os outros acima de seu próprio trabalho criativo é um parasita emocional». 

Galt é um herói deste liberalismo libertário, hoje votaria contra em tudo o que fossem atentados à sua desprezível ideia de liberdade individual irrestrita absoluta, do eu, eu e eu. Essa é essência do nosso tempo. 

A ideia da exaltação suprema do indivíduo e dos seus caprichos, e do conceito de ilimitado aplicado à economia e à ação humana é a teoria que sustenta a apologia da atomização do indivíduo, a destruição dos laços sociais e das virtudes cívicas. 

Rand, como outros autores desse filão, divinizaram a nossa dimensão relativista insuportável, destruidora e egoísta perante qualquer ideia de Estado ou contrato social.

É o homem ético, o homem decente, a resposta a qualquer ideia de Estado tirânico e ou infantilização dos sonhos libertários.