Após anos de hostilidade quase aberta, os líderes das duas grandes potências mundiais sentaram-se para conversar, por videoconferência. Esta discussão entre o Presidente chinês, Xi Jinping e o seu homólogo americano, Joe Biden, ao longo de três horas, na segunda-feira à noite, talvez tenha sido o momento mais caloroso entre os dois. Apesar da tensão no que toca aos temas mais espinhosos, como a autonomia de Taiwan – Xi avisou Biden para não “brincar com o fogo”, descreveu o jornal estatal chinês, Global Times – ou os abusos da China no Tibete e contra os uigures, uma minoria muçulmana.
“Este encontro pode ser o início de uma acomodação entre as duas partes”, diz Luís Tomé, professor catedrático e diretor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Autónoma de Lisboa (UAL), à conversa com o i. “Que vão competir é uma evidência, sempre houve competição, não é novidade. A questão é até onde pode escalar essa competição”, continua o investigador. Que, como outros observadores, reagiu com um certo alívio a este encontro virtual, num momento em que os alertas quanto a uma nova Guerra Fria viraram quase lugar comum.
No entanto, ao contrário do que vimos no século XX, entre os Estados Unidos e a União Soviética, desta vez as duas grandes potências não dispõem de sistemas económicos separados, estanque. As duas grandes potências atuais operam no mesmo mercado global, com as suas economias profundamente integradas – vimos os impactos disso aquando a guerra comercial entre Washington e Pequim, nos tempos da Administração de Donald Trump.
“Desde Donald Trump, mas com continuidade em Joe Biden, que há uma tentativa americana muito forte de desacoplar da economia chinesa”, nota Diana Soller, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI-NOVA).
Aliás, se em tempos as posições de Trump quanto à China, prometendo manter uma política protecionista, trazendo de volta postos de trabalhos industrial deslocalizados para este país, era vista com um certo desdém, como mera tentativa populista de seduzir o eleitorado, esse discurso acabou por se implantar em Washington. O fosso entre republicanos e democratas está mais fundo do que nunca, mas se há coisa que os une é a necesidade de se opor à ascensão da China.
Até conseguimos ouvir um eco disso no encontro entre Xi e Biden, quando o Presidente dos Estados Unidos prometeu “proteger os trabalhadores e a indústria americana contra práticas comerciais e económicas injustas da República Popular da China”.
Xi respondeu que Washington deve parar de “abusar do conceito de segurança nacional para oprimir empresas chinesas”, clara referência à Huawei, uma multinacional que se tornou um alvo dada a corrida sino-americana à dominação no setor da tecnologia e comunicações.
Apesar destes ataques e contra-ataques, num contexto em que Pequim aposta na “diplomacia do lobo guerreiro” – referência a um filme de ação chinês, estilo Rambo – e que o tom de Washington se torna mais duro, estas duas potências, num futuro próximo, terão de aprender a conviver de alguma forma. Nem que seja “porque os EUA percebem perfeitamente que, enquanto as suas economias estiverem acopladas, o colapso de um dos adversários pode implicar o colapso do outro”, salienta Soller.
Para ver isso, basta olhar para o caso Evergrande. Quando este conglomerado do imobiliário chinês, astronomicamente endividado, começou a colapsar, surgiram receios de uma nova crise financeira à escala global.
Claro que as tentativas de separar as duas maiores economias gerarão atritos. O que nos espera “vai ser um permanente conflito latente”, avalia a investigadora do IPRI-NOVA. Isto “enquanto não encontrarem um modus operandi que não seja funcionar conflitualmente”.
No fundo, não poderia ser de outra maneira, com os EUA a assistirem ao fim do seu papel como única potência global. O centro da economia global deslocou-se para a Ásia-Pacífico e Washington não quer estar longe da ação. A questão é que EUA e China são “dois navios gigantes a navegar no oceano”, cujo rumo precisa de ser corrigido para não colidirem, como descreveu Xi na sua conversa com Biden, citado pelo Xinhua.
Pedra no sapato Neste encontro entre Xi e Biden, “recebemos sinais mistos”, aponta Luís Tomé. Contudo, “Biden não podia deixar de mostrar à opinião pública americana, internacional, e ao Congresso, de que falava em questões como os direitos humanos ou linhas vermelhas quanto a Taiwan e ao Mar da China”.
Já Xi deixou “uma tirada muito forte” quanto a Taiwan, descreveu o investigador. Como não podia deixar de ser, dado a oposição à autonomia deste território, bastião dos nacionalistas na guerra civil contra Mao Tsé-Tung, ser uma questão de orgulho para os comunistas chineses. “Vêm Taiwan como parte integrante do seu território”, lembra Diana Soller. “Isso é ideológico e inegociável”.
De certa forma, esta cimeira virtual também foi sinal para o Governo de Taipé, acrescenta o investigador da UAL, “para que controle os seus ímpetos independentistas, que inquietam Pequim. E, portanto, põe em risco outros interesses dos Estados Unidos”, explica.
“Afinal, a China é o maior parceiro comercial dos EUA, e estes são o maior parceiro comercial da China”, salienta Tomé. “Além de que há domínios sensíveis em que os EUA dependem de importações da China, como nas terras raras”, exemplifica, referindo-se a minerais como o cobalto ou lítio, essenciais para a produção de smartphones ou baterias. E “80% das importações americanas de terras raras, que são essenciais para altas tecnologias, vêm da China”.
Ainda assim, Taiwan será sempre uma dor de cabeça para as duas grandes potências mundiais. “A expectativa é que apesar de terem posições tensas sobre este assunto, consigam controlar esta escalada. É a questão principal que pode levar a uma guerra quente entre estas duas superpotências”, alerta o investigador da UAL. Soller concorda e mostra-se preocupada. “O problema destes momentos é que pode sempre haver uma escalada, um passo em falso”.