Ao passar pelo cais de Santa Apolónia fiquei, por momentos saudosos, a observar o paquete Funchal, pelos vistos a ser remendado depois de anos e anos perdido no fundo do poço do ablívio. Em 1967, viajei nele para a cidade que lhe deu o nome. O meu pai ia cumprir a sua comissão como juiz de terceira, em Santa Cruz, essa aldeia que me ficou para sempre no ponto mais alto da ternura. É curioso como, agora que só há juízes de primeira sejam todos, ou quase todos, de segunda. De segunda apanha, quero dizer. Figuras sinistras como abutres nas suas vestes negras e de cérebros caliginosos nos quais a prepotência atinge os mesmos níveis do que a ignorância.
Em Santa Cruz aprendi a ler e a escrever, tive um mestre como professor primário, e tive o meu pai como mais mestre ainda quando me sentava ao seu colo, abria as páginas dos jornais e me ia ensinando as letras grossas dos títulos. Os jornais vinham por assinatura, no avião que aterrava e levantava aos sábados no aeroporto minúsculo que tinha uma varanda virada para a pista onde as pessoas assistiam à sua chegada e à sua partida enquanto tomavam capilés.
A Bola saía três vezes por semana e os três exemplares iam lá para casa juntos, amarrados com cordel. Quando comecei a ler sozinho, estendia aqueles lençóis no chão da sala e deitava-me sobre eles numa curiosidade excitada sem saber ainda que um dia, muitos anos mais tarde, iria subir a escadaria em curva de madeira carcomida do n.º 23 da Travessa da Queimada e sentar-me lado a lado com os nomes que aprendera a decorar: Carlos Pinhão, Vítor Santos, Aurélio Márcio, Alfredo Farinha, Carlos Miranda, Homero Serpa…
O meu pai foi estudante de Coimbra e deixou-se apaixonar pela Académica. Como qualquer filho que olhava o pai como centro do meu emergente mundo masculino, também eu ganhei a paixão pela Académica. Precisamente no ano certo. No momento exato em que a Académica era tão grande como o Benfica e o Sporting, acima até de FC Porto e Belenenses, a par com o Vitória de Setúbal. Tempos que não voltam mais.
Nesse ano de 1967 a Académica ficou em segundo lugar do campeonato, a três pontos do Benfica, e perdeu a final da Taça de Portugal para o vitória de Setúbal, eliminando o Benfica pelo caminho. Eu lia os nomes heroicos nas páginas enormes de A Bola e também não sabia que, muito anos depois, viria a ser amigo de tantos deles: o nosso ‘Velho Capitão’, Mário Wilson, o treinador, o meu querido Vasco Gervásio, dono de um sentido de humor tão coimbrão, o Rocha, afilhado de casamento da minha avó Manuela, lá no Olival, Toni meu irmão, Artur Jorge, os manos Vítor e Mário Campos, o Belo, agora na Dinamarca com quem vou falando todas as semanas. Quase todos rapazinhos de vinte anos com aquela camisola fascinantemente negra de losango ao peito e o mundo todo à sua frente numa mistura de rebeldia e alegria que bulia com um país a branco e preto.
Depois a Académica foi à Madeira. Calha-me ter uma memória comprida cujos braços se estendem até aos lugares meio obscuros da mais tenra da infâncias. Era um acontecimento. A Académica no Estádio dos Barreiros, ainda pelado, contra um Marítimo que boiava sem ambições nas divisões secundárias ou distritais, não sei ao certo.
O jogo, amigável, teve momentos pouco amigáveis, com um ou outro energúmeno a atirar garrafas para dentro do campo e os jogadores baixando-se para afastar os cacos. Era amigável mas um jogo, ainda assim. E a Académica, como era sua obrigação, ganhou e por muitos.
À medida que sabia ler e escrever, aprendi a bater à máquina, com um dedo só, como ainda hoje, as fichas dos jogos do campeonato. As fichas de A Bola começavam com um boneco, salvo erro do Francisco Zambujal, com dois jogadores disputando uma bola, cada equipado com as cores da sua equipa embora as cores também fossem a branco e preto e a gente só soubesse distinguir os que tinham riscas ou os que não tinham. Ou ainda os da Académica, fraternamente vestidos de negro por completo.
Em seguida, as fichas iam por ali fora: número de espetadores, tirado a ‘olhómetro’, o nome do estádio, do árbitro e dos fiscais de linha, seguido do nome do clube (em caixa alta) e dos jogadores que se perfilavam em campo com os pontos e vírgulas a fundamentarem as posições. Na final da Taça, foi assim: Maló; Celestino, Rui Rodrigues, Vieira Nunes e Marques; Toni, Vítor Campos, Ernesto e Crispim; Rocha (cap.) e Artur Jorge. O jogo durou 144 minutos até ser resolvido por Jacinto João, no segundo prolongamento, a fazer o 3-2.
A Académica está mergulhada numa classificação tão infeliz que é preciso uma lupa para a descobrir na tabela da II Divisão. A capa do Zeca já não dá no chão abrindo em flores. Do Choupal até à Lapa os sorrisos morreram nos lábios dos rapazes das camisolas negras que brilhavam ao sol.