A Europa voltou a tornar-se epicentro da pandemia, muito devido aos surtos no centro e leste do continente. No entanto, desta vez há algo diferente, um desfasamento estranho, como que uma pandemia a duas velocidades. De um lado, deparamo-nos com populações vacinadas, que vão sendo infetadas sem enfrentar grandes complicações. Olhando para o outro, sentimos um déjà vu dos piores momentos dos últimos anos, perante morgues cheias em vários países europeus, com pessoas não-vacinadas a inundar as urgência.
É a «pandemia dos não-vacinados», como descreve o virologista Pedro Simas. Em Portugal, que desfruta de uma taxa de vacinação contra a covid-19 excecionalmente elevada, acima dos 87%, tendo até mais de 36% da população elegível recebido um reforço da vacina, vivemos uma «situação não-pandémica», reforça o diretor-executivo do Católica Biomedical Research Center.
«Ou seja, o número de infeções, que vai aumentar, já não tem o efeito que tinha na pandemia, quando isso se traduzia numa grande percentagem de doença clínica», explica. Já no leste e centro da Europa vemos uma parte da população protegida, com o resto exposto ao pior. Levando até a que a Europa seja a única região com aumento nas mortes registadas durante a última semana, uns 5%. alertou a Organização Mundial de Saúde.
É uma dissonância que não passa despercebida. No que toca ao leste europeu, há uma notória relutância dos líderes políticos em pressionar os cidadãos a vacinarem-se. Não há dúvidas que seria algo impopular, dado o quão dominante é o discurso anti-vacinas, com taxas de vacinação completa baixíssimas, não passam dos 30% na Roménia, estando abaixo dos 25% na Bulgária, ambos parte da UE, não sofrendo de problemas no fornecimento de vacina. Mas no centro da Europa a história é outra. Em países como a República Checa, Eslováquia, Áustria ou Alemanha, onde os não-vacinados são cada vez mais vistos como uma minoria incómoda e irresponsável, aumenta a frustração.
Não espanta que cada vez mais governos do centro da Europa avancem com sanções ou confinamentos somente para gente não-vacinada. Isto num contexto de fortes críticas, considerando essas medidas abusivas ou até contraproducentes, acabando a reforçar a desconfiança quanto às autoridades que motiva muito dos chamados anti-vaxxers.
O plano mais recente foi aprovado na Alemanha, fazendo com que apenas gente vacinada ou recentemente recuperada de uma infeção possa entrar em restaurantes ou eventos públicos, culturais e desportivos – apresentar um teste negativo, como se pode fazer em Portugal, já não serve. Estas medidas são aplicáveis em estados com mais de três pacientes hospitalizados com covid-19 por cada 100 mil habitantes. Ou seja, neste momento, quase todos os estados alemães.
A questão é que a Alemanha, que tem somente uns 68% da população vacinada, enfrenta um surto «dramático», nas palavras de Angela Merkel, na quinta-feira. Não se trata de uma hipérbole, nesse próprio dia o país registara quase 65 mil novos casos de covid-19, sendo que, até no último pico, em abril, mal ultrapassaram as 30 mil infeções. «Não consigo dizê-lo de outra forma», lamentou a chanceler. «A quarta vaga está a atingir o nosso país com toda a força».
O surto chegou ao ponto que, no país com a maior economia da Europa, que ao longo dos últimos anos chegou receber pacientes covid-19 vindos de quase todos os países vizinhos, um hospital em Freising, na Bavária, viu-se obrigado a transportar pacientes de helicóptero para Itália, dado os cuidados intensivos da região estarem cheios.
«Estamos no limite da nossa capacidade, por isso é que temos de recorrer a isto», desabafou Thomas Marx, diretor do hospital de Freising, à AFP. Entre os profissionais de saúde alemães, o desgaste vai-se acumulando. «Acho mesmo surpreendente que a vacinação não seja aceite pelas massas, mesmo tendo a possibilidade de aceder a ela», acrescentou Niklas Schneider, médico intensivista noutro hospital bávaro. «Não é completamente compreensível que tantas pessoas se permitam ser enganadas por algumas histórias de terror sobre as vacinas».
É algo que se sente muito na Saxónia, que sofre da mais baixa taxa de vacinação na Alemanha, ficando abaixo dos 58%. Foi um executivo da Saxónia – os estados alemães têm grande independência do Governo federal, quanto a impor medidas de saúde pública – que liderou a carga por um confinar os não-vacinados, tornando obrigatório apresentar certificado de vacinação para entrar em qualquer estabelecimento, excepto farmácias e supermercados.
Claro que os anti-vaxxers mais dedicados têm vindo a encontrar maneiras de furar as restrições. Ainda esta quinta-feira 12 pessoas acabaram detidas na Alemanha, acusadas de produzir e vender certificados de vacinação falsos, conseguindo criar um QR code válido e vendendo-os por mais de 400 euros cada um, avançou a Deutsche Welle.
Entretanto, na República Checa e Eslováquia – que têm uma taxa de vacinação completa de apenas 58% e 45% da população, respetivamente – já tinham sido aplicadas medidas muito semelhantes às alemãs.
Contudo, as medidas mais duras surgiram na Áustria. O Governo, insatisfeito com a taxa de vacinação de 66%, impôs um verdadeiro confinamento a não-vacinados, proibindo-os de sair de casa excepto por motivos essenciais, colocando polícias na rua a conduzir vistorias aleatória, de maneira a garantir que as regras são cumpridas.
O Governo austríaco, liderado por Alexander Schallenberg, do conservador Partido Popular Austríaco (ÖVP), após o seu colega Sebastian Kurz ser afastado devido a um escândalo de corrupção, quis dar mais um passo. Foi anunciado que estão a preparar instrumentos legais para tornar obrigatória a vacinação contra a covid-19. Aqueles que recusarem enfrentarão sucessivas multas, que poderão ser transformadas em penas de prisão se não forem acatadas.
«Durante muito tempo, houve um consenso no país que tornar obrigatório a vacinação não era necessário», explicou Schallenberg, que também decretou um confinamento nacional, durante pelo menos vinte dias, com os hospitais austríacos à beira do colapso. «Temos de enfrentar a realidade», apelou o chanceler.
Foi algo que deixou o velho parceiro de coligação dos conservadores, o Partido da Liberdade da Áustria (FPÖ), de extrema-direita, à beira de um ataque de fúria. «A partir deste dia, a Áustria é uma ditadura», acusou Herbert Kickl, dirigente do FPÖ, citado pelo Guardian.
Que partidos de extrema-direita funcionem como porta-voz dos negacionistas da vacinação, alicerçando-o numa narrativa de liberdade individual, virou lugar comum. Aliás, tanto na Áustria como na Alemanha, o grosso das pessoas que recusam se vacinadas votam na extrema-direita, mostram as sondagens da Forsa.
No caso alemão, mais de metade vota na Alternativa para a Alemanha, (AfD) – não espanta ninguém que a Saxónia, o estado onde este partido tem melhores resultados, também seja o com a menor taxa de vacinação.
«É assustador, todos os argumentos e medidas para persuadir não-vacinados são simplesmente ignorados», notou Manfred Güllner, investigador da Forsa, ao Economist. Já um editorial do Der Spiegel resumia: «Uma federação de imbecis garantiu que a Alemanha está a ser atingida de uma forma extremamente dura pela quarta vaga – muito mais que outros países europeus».