A história e as polémicas da Comenda

A Herdade da Comenda é marco da ocupação romana e foi ponto de passagem das elites do século XX. Agora está vedada para uma requalificação com contornos desconhecidos.

Por Maria Moreira Rato e Joana Mourão Carvalho

A Herdade da Comenda inserida no Parque Natural da Arrábida, em Setúbal, que tem como principal chamariz o seu palácio, desenhado pelo arquiteto Raul Lino, em 1903, para servir de residência de veraneio ao ministro de França Conde D’Armand, é um local com séculos de história. Prova disso são os novos vestígios de estruturas pertencentes ao período romano que foram ali encontrados na semana passada.

«Dados preliminares, que resultam das sondagens já efetuadas na margem direita da Ribeira da Ajuda, junto ao Rio Sado, permitem concluir que os achados pertencem a um muro da era romana, possivelmente tardo-romana», anunciaram os proprietários da herdade, em comunicado divulgado na passada quarta-feira.

Durante os trabalhos arqueológicos, realizados em articulação com a Direção-Geral do Património Cultural (DGPC), foram também encontradas outras estruturas, como uma em arco, pertencente a um balneário do mesmo período, cuja relação com este muro será agora estudada. Além destas estruturas foram ainda descobertos artefactos como cerâmica romana e anzóis. 

De acordo com a nota à imprensa, este levantamento arqueológico deverá continuar nas duas margens da ribeira, onde já tinha aparecido um conjunto de cetárias – tanques retangulares destinados à salga e fabrico de diversos preparados de peixe. E a verdade é que aquele local era o maior centro industrial de salgas de peixe do Império Romano.

Em declarações ao i, Elisabete Barradas, arqueóloga responsável pelas escavações, apontou que a existência de vestígios romanos na Herdade da Comenda é conhecida há mais de cem anos. «Aliás os primeiros registos são de 1906, e isso está amplamente referido na bibliografia que tem sido feita ao longo de todo este tempo», acrescentou.

«O que aqui se encontra será, provavelmente, uma realidade muito semelhante à que existe em Troia. Mas a verdade é que nunca tinha sido feito um estudo tão aprofundado na Comenda como aquele que estamos agora a elaborar», comentou a profissional, constatando que este núcleo, apesar de semelhante ao de Tróia, é de menor dimensão. 
Sobre o trabalho académico que ainda pode ser desenvolvido com base nestes vestígios, Elisabete adiantou que ainda se encontram numa «fase muito inicial dos trabalhos», mas admite que «o desenvolvimento de artigos científicos faz sentido».

«O que encontrámos agora são os primeiros resultados que confirmam a presença de vestígios do período romano na margem sul da Ribeira da Ajuda. Mas ainda temos muito trabalho pela frente, temos que escavar muito mais para perceber a que pertencem estes muros que agora encontramos», sublinhou, realçando que podem pertencer àquilo que se acredita ter sido uma residência.«É isso que temos que estudar. Temos ainda de perceber o real estado de conservação dos achados porque estão muito à superfície, onde antes se encontrava um parque de estacionamento. Só depois poderemos retirar conclusões».

É por essa razão que os trabalhos vão continuar e a investigação será também feita numa região pertencente à antiga divisão administrativa daquela que era uma província integrada no Império Romano. Segundo a arqueóloga, a ocupação romana da Península Ibérica terá tido início no decorrer da Segunda Guerra Púnica, isto é, entre 218−201 a.C., com o objetivo primordial de atacar os domínios de Cartago que se encontravam onde agora são Portugal e Espanha. 

«Por enquanto, o que está a acontecer é quase como um jogo da Batalha Naval em que vamos fazendo algumas escavações em vários pontos a ver o que encontramos e depois estabelecer a possível relação entre esses achados», concluiu.

Um palacete de veraneio que foi refúgio para a viúva de JFK

Com uma dimensão de 600 hectares sobre o rio Sado, integrada numa reserva protegida, a Herdade da Comenda chegou a pertencer a Vasco da Gama e à Rainha D. Maria II. Mas só em 1903, é que foi erguido naquela zona florestal à beira mar plantada um palácio com cinco pisos e 26 quartos que, ao longo do século XX, seria a casa de veraneio do Conde D’Armand e dos seus amigos da alta sociedade e realeza europeia.

Foi também ali, entre aquelas paredes edificadas há mais de um século, que, em 1963, Jackie Kennedy se refugiou com os filhos, após o assassínio do seu marido, na altura Presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy.

Foi por sugestão da princesa Lee Radziwill, sua irmã mais nova, que Jackie fez o luto na Comenda. Lee era amiga da família D’Armand, tendo já passado alguns verões no palácio português – sendo que numa dessas ocasiões chegou a levar consigo um dos seus confidentes mais próximos, o escritor norte-americano Truman Capote, mais conhecido pela sua obra A Sangue Frio, pioneira no género do jornalismo literário. 

Longe dos holofotes, aquela propriedade sossegada na Arrábida oferecia a Jackie o refúgio de que as ilhas gregas ou a Côte D’Azur não dispunham.

A viúva de JFK foi das últimas personalidades a frequentar a casa de veraneio dos nobres franceses, antes de ser vendida poucos anos depois.

Os anos de abandono e várias polémicas depois

Na década de 80, o construtor português António Xavier de Lima tornou-se proprietário da Comenda. À sua morte, em 2009, os herdeiros colocaram-na à venda por cerca de 45 milhões de euros.

Ao longo dos anos, foram surgindo vários interessados em comprar, mas a venda só viria a efetivar-se quase onze anos depois. Nesse intervalo de tempo, o palacete foi-se deteriorando, necessitando de obras profundas, no valor de vários milhões de euros, depois de anos ao abandono. As estruturas principais mantiveram-se preservadas, mas o telhado e o chão dos pisos superiores cederam. Portas e janelas foram partidas, as paredes foram grafitadas e os painéis de azulejos roubados.

Só no final de 2019 é que a Herdade da Comenda conheceu um novo dono: Fernando Manuel das Neves Gomes, presidente do Conselho de Administração da empresa imobiliária Seven Properties e também advogado e amigo próximo de Paulo Mirpuri, antigo proprietário da falida operadora de aviação Air Luxor, presidente da Mirpuri Foundation e alegadamente um dos financiadores do partido Chega.

A venda foi escriturada a 5 de dezembro daquele ano, em Lisboa, pela Seven Properties e por um procurador em representação dos herdeiros de António Xavier de Lima, por 16 milhões de euros, valor que incluiu o palácio, os 600 hectares de propriedade com acesso à praia, bem como o parque de estacionamento e de merendas.

Apesar de todo o processo ter aparentemente acontecido dentro dos trâmites legais, a empresa está envolta numa teia de polémicas. Isto porque o novo proprietário da Comenda constituiu a Seven Properties em 2006 com um capital social de 50 mil euros. Contudo, segundo o Portal da Justiça, em 2017, a empresa fez um aumento de capital para 5 milhões de euros. A ação foi justificada com a entrada de uma nova acionista, Anna Sjöholm, com morada de uma empresa (WorldWide Formations) no Dubai, perita em paraísos fiscais e que, em 2016, surgiu nos Panama Papers – uma investigação que expôs fugas ao Fisco.

Além desta situação controversa, o processo de venda da herdade gerou mais incómodos na região.

Anteriormente à propriedade ser adquirida pela Seven Properties, os setubalenses e quem por ali passasse podiam usufruir, há quase nove décadas, deste património ambiental e natural, bem como dos acessos à praia ou ao parque de merendas. Porém, desde 27 de setembro deste ano, têm-se confrontado com o levantamento de múltiplas vedações em caminhos inseridos no Parque Natural da Arrábida, os quais não apresentavam qualquer barreira física.

A administração da Seven Properties alega que o acesso foi vedado para que se proceda à recuperação e à requalificação do património e do parque florestal. Já o presidente da Câmara de Setúbal diz desconhecer os contornos do projeto.

Também os trabalhos arqueológicos na herdade surgiram na sequência do «processo de licenciamento para o restauro do Palácio da Comenda», que estava e continua em processo de classificação pela DGPC, que exigiu «a realização urgente de trabalhos de arqueologia na zona envolvente». 

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