Fui recentemente abordado por uma delegação de reformados de uma empresa, que pretendia ouvir a minha opinião acerca de um projeto de apoio e acompanhamento dos colegas em situação de dependência, necessitados do auxílio de terceiros para as atividades básicas do dia-a-dia.
Esta louvável iniciativa é sempre uma ‘aventura arriscada’, não só por exigir tempo, esforço e dedicação por parte dos voluntários, como também por não ser nada fácil lidar com estas situações problemáticas. «Aprecio o vosso gesto e felicito-vos pela iniciativa, mas é preciso preparação adequada e não desanimar perante qualquer fracasso ou imprevisto», disse-lhes eu, apesar de perceber que aqueles corajosos ex-funcionários estavam mesmo interessados em levar o projeto por diante. E um deles adiantou: «Quando não for possível visitá-los, ao menos… um simples telefonema para saberem que não estão sós».
Ao ouvir aquelas palavras, foi como se tivesse levado um choque. Lembrei-me de um caso que há uns anos se passou comigo, bem revelador da importância dessa voz amiga que, em certas ocasiões, até pode salvar.
Estava eu em plena consulta no centro de saúde quando, subitamente, o telefone tocou. Calculei que fosse mesmo urgente para me passarem a chamada. E não me enganei – embora estivesse muito longe de imaginar o que estava por trás daquele telefonema.
Um homem da minha lista de utentes, na casa dos 70 anos, com uma estrutura familiar mantida mas com uma história arrastada de nostalgia, tristeza e insegurança, fala-me do outro lado da linha como que a pedir socorro: «Doutor, sinto-me mal! Precisava muito de falar consigo ou com alguém… Acho que não faço falta nenhuma… As pessoas já estão fartas de mim… A minha vontade é desaparecer…». Respondi de imediato: «Está redondamente enganado. A cada pessoa foi confiada uma missão. A mim foi servir os doentes. E a si, qual foi? Já pensou nisso? Quando puder, venha ter comigo para discutirmos o assunto. Pense no que lhe estou a dizer. É o seu trabalho de casa, até voltar à consulta».
O homem ouviu em silêncio as minhas palavras e, aparentemente mais calmo, despediu-se cordialmente.
Algum tempo depois, o senhor voltou à consulta mas, para meu espanto, foi ele quem puxou o assunto: «Talvez já não se lembre daquele telefonema que lhe fiz… Estava desesperado!». Lembrei-me naturalmente do caso, e ele continuou: «Sabe onde estava? Ia a caminho da ponte sobre o Tejo, mas a sua conversa mexeu comigo e impediu que eu avançasse…».
Levantei-me da cadeira, aproximei-me dele e dei-lhe um abraço, enquanto lhe dizia: «Estou feliz por si!».
O tratamento seguinte foi dar-lhe um pouco mais de atenção e conversarmos calmamente sempre que me procurava. A confiança tomou conta dele. Sei que está bem, assim como toda a família.
Ninguém soube desta história a não ser o próprio. Guardei para mim este episódio ocorrido há anos, que só hoje revelo – motivado pelas intenções daquela delegação que se propõe acompanhar os mais necessitados, nem que seja através de um simples telefonema.
Fica a chamada de atenção para médicos e para toda a gente. Quantas vezes com um simples telefonema, apenas para saber como a pessoa está, conseguimos abrir uma janela de esperança no coração de seres humanos sequiosos de um carinho, de uma palavra, de um sorriso…
Nós, médicos, temos responsabilidades acrescidas neste campo. A nossa disponibilidade tem de ser total; mas, para isso, a gestão do tempo de permanência no serviço não pode continuar como até aqui.
Os médicos de família têm a sua missão específica junto dos que lhes confiaram as suas vidas. Não faz sentido nenhum transformá-los em ‘bombeiros voluntários, prontos a apagar fogos quando há incêndios’, sem tempo suficiente para se ocuparem, como devia ser, do seu trabalho com os doentes.
A Medicina Familiar precisa que se olhe para ela com outros olhos. É urgente um investimento nesta área. Não deixem sair os bons elementos e os que escolheram esta especialidade por vocação. Os doentes têm o direito de ter um médico de família em quem confiem.
E mesmo sem presença física, há outras formas de estarmos ‘presentes’. No caso que hoje partilho, foi um simples telefonema a evitar o pior. A voz amiga que lhe estendeu a mão.
A voz que salva.