A mudança de estilo de um artista pode quase quebrar a sua carreira. Bob Dylan foi quase excomungado pelos seus fãs quando abandonou o folk da guitarra acústica para partir para caminhos mais sónicos e rock e eletrificou o seu instrumento. Muitos fãs torceram o nariz quando Kanye West anunciou que ia fazer um disco de música gospel, com Jesus is King. O que será que irá acontecer agora ao Conjunto Corona?
Este duo, formado pelo produtor David Bruno e o rapper Edgar Correia, que assumem os nomes artísticos dB e Logos, depois de se terem tornado uma referência durante quase uma década num estilo de hip-hop alternativo, adotando samples que vão desde o rock psicadélico, ao krautrock ou ao rock progressivo, agora, em G de Gandim, o quinto disco do conjunto, viram-se para o Reggaeton, num disco que promete encher as pistas de dança de suor e danças bem quentes.
O que motivou os Corona a adotar este estilo tão associado com a noite? Será por saudades de bater pé até de madrugada? Nada disso. “Agora quero é paz e sossego”, conta ao i Logos. “Só saio para ir tocar, quase. Às vezes ainda vou dar uma volta, mas já não tenho essa rotina”, confessa.
“Em Corona não somos reféns de um estilo”, explica David Bruno. “Usamos música como uma base para contar a história que queremos. Esta história é sobre a noite do Porto, sobre as nossas memórias de infância de quando começámos a sair à noite, portanto a melhor forma de a alimentar era com um estilo de música marginal, que, neste caso, não seria o hip-hop, mas sim o reggaeton”, afirma o produtor, que este ano lançou um disco em colaboração com Mike el Nite, a estreia do projeto David e Miguel.
Levar os sons da discoteca Muxima para um álbum Um dos fatores que levou muitos a apaixonarem-se pelo trabalho destes dois homens foi a forma como adotaram elementos da regionalidade do Porto e das carismáticas terras que existem no norte de Portugal.
Com a ajuda de samples retiradas dos arquivos da RTP ou de programas como A Liga dos Últimos e de referências a locais e ao calão do Porto, Conjunto Corona ajudou a pintar na sua música a realidade de tantos jovens que vivem acima de Aveiro e transportaram muitos filhos da Capital para uma realidade onde velhos de boina almoçam tripas no balcão de um tasco e jovens de fato de treino e chapéu comprado na feira tentam impressionar raparigas ao mostrar as novas luzes néon do seu carro.
Com uma regionalidade tão presente na identidade sonora da música, o i questionou os músicos porque é que optaram por adotar um estilo musical natural dos “nuestros hermanos”, não estariam a abandonar aquilo que os tornava tão especiais?
“O reggaeton não representa o Porto?”, diz incrédulo David Bruno. “A música espanhola faz parte daquilo que é viver no Porto. Basta procurares no Google imagens da discoteca Muxima, em Gaia”, aconselha-nos, revelando que a promoção do disco, de forma a ilustrar este ambiente, será feita através de frascos de perfume com liquido rarefeito que possuem “cheiro a proxeneta”, descreve o produtor.
“Aqui entre nós, o Reggaeton podia ter sido inventado no Rio Tinto e é lá que este tipo de música soa melhor”, diz-nos Edgar, enquanto David afirma que Nicky Jam, um dos mais famosos artistas de reggaeton, podia ser de Canidelo.
A exploração deste estilo, pode-se dizer, que foi quase divina, uma vez que surgiu depois de David fazer uma peregrinação até Santa Rita.
“Na altura, andava à procura de inspirações, por isso, fiz uma playlist de Reggaeton para ouvir durante a minha peregrinação que passou por Gaia, Porto, Maia e Rio Tinto, cerca de 13 quilómetros”, explica. “Fui a ouvir Reggaeton pelo caminho e posso garantir, este é a banda sonora para aquela zona. Olhas para as pessoas e parece que o Reggaeton foi inventado para elas, desde os mais velhos até aos mais novos. Vai a Rio Tinto, põe Reggaeton a tocar no teu carro e vês o que acontece”, desafia-nos David.
No entanto, a vontade de utilizar este estilo musical latino não foi algo premeditado, tal como nos antigos projetos de Corona, primeiro surgiu o conceito do disco.
Edgar confessa-nos que viveu durante três anos em Lisboa e, mesmo não parecendo muito tempo, quando regressou ao seu Porto parecia que estava numa cidade diferente.
“Foi uma grande chapada de realidade. Vários sítios míticos fecharam, encontrei um Presidente da Câmara que queria introduzir câmaras de segurança na cidade e criminalizar outra vez o consumo de drogas”, diz, referindo-se a Rui Moreira e às novas medidas que implementou na cidade, sendo inclusive mencionada na música Alucina Eugénio, como “o Chef Moreira a filmar”. “A cidade parecia outra, mais alegre, bonita, com mais turistas, mas os mesmos problemas continuam a existir. Para mim, isto era andar para trás”.
Efetivamente, o Porto nos últimos anos transformou-se numa cidade diferente, à semelhança do que aconteceu a Lisboa, tornou-se uma cidade que se preocupa mais com receber os seus turistas do que em proteger as pessoas que sempre viveram nestes espaços e, para Edgar, os problemas gerados pela gentrificação foram ainda exacerbados pela pandemia.
“Apesar do disco ter começado a ser escrito antes do primeiro confinamento, abordamos muitos desses temas. A pandemia só veio confirmar que os problemas da cidade ainda existem e que os portuenses que continuam a viver lá, querem assumir a cidade e sentem falta do sítio onde outrora viveram”, diz-nos.
“As pessoas que vivem no Porto são defensoras acérrimas deste sítio, não porque achem que são melhores, mas porque gostam genuinamente da cidade”, elucida. “Quando começámos a pensar neste disco, apesar de ainda não termos uma ideia concreta do que iríamos fazer, queria que fosse esta a mensagem que estivesse inerente”.
Todas estas questões e dilemas levaram a dupla a pensar nos seus tempos de infância e quão diferentes foram da atualidade, nomeadamente, o sair à noite e todos os rituais que envolviam esta atividade.
“Eu e o David nascemos em 1985, temos ambos 36 anos, e começámos a sair à noite, apesar de não nos conhecermos nessa altura, mais ou menos na mesma fase da nossa vida, no início dos anos 2000”, explicou o rapper, fazendo uma descrição do cenário que existia na noite do Porto.
“Nessa altura não existia o mesmo movimento que existe, atualmente, na Baixa do Porto. Era um local deserto e perigoso. Não havia nada para fazer lá. Portanto, a noite do Porto era na zona industrial, nas grandes discotecas”.
Foi nestes locais e nestas aventuras que David e Edgar se inspiraram para criar os ambientes sonoros que ouvimos em G de Gandim, especialmente nos interlúdios do disco, na sua introdução, com o segurança a tentar subornar os personagens para entrarem na discoteca, ou o skit que se passa na casa de banho, com dois personagens a comentarem como a Mara está “demais”.
G de Gandim é um disco bastante pessoal, sobre a transição da infância para um “gandim”, algo que é descrito na perfeição em Mãe Birei Gandim, com David Bruno a cantar sobre os tempos em que era expulso das aulas de EVT, das queixas da diretora de turma ou de ir para trás do pavilhão aprender “a travar fumo”. Mesmo com o tom humorístico que sempre esteve presente na sua discografia, é complicado para o ouvinte não ouvir estas música e, de certa forma, recordar a fase mais rebelde da sua vida.
“Nunca tínhamos falado sobre esta fase da nossa vida e pensámos que podia ser interessante abordá-la através do Corona”, o personagem titular dos discos de Conjunto Corona que, no disco anterior, Santa Rita Lifestyle, tinha-se refugiado nos arredores do Porto face à gentrificação da cidade. Neste disco, segundo os músicos, observamos o personagem a regressar à noite e a relembrar o que era o verdadeiro Porto.
“A base da história, aquilo que não é ficção e que nós queremos transmitir aos nossos ouvintes, são todas as transformações que ocorreram na cidade do Porto, em especial nos últimos anos, e demarcar mais a representação da cidade, nomeadamente através de espaços, dos portuenses, do calão, dos costumes e dos rituais”, explica Edgar, referindo que, enquanto fã de hip-hop, sempre sentiu uma forte relação com o Reggaeton, uma vez que são dois estilos, aos seus olhos, “marginais”.
“A maior parte das pessoas achava chunga, mas como ouvíamos rap partilhávamos esse sentimento de não pertencermos a algo”, diz o rapper. “O rap não era bem recebido, a maior parte das pessoas considerava que era música de negros e o Reggaeton conseguia ser ainda mais marginalizado e encostada à chungaria que vivia nos bairros”, recorda.
No entanto, atualmente, o Reggaeton é um dos estilos mais populares e que, inclusive, domina os festivais alternativos. Basta recordar que artistas como J Balvin, Rosalia, Bad Bunny ou C. Tangana dominam alguns dos lugares com mais destaque no cartaz do Primavera Sound, tanto a edição em Barcelona como a do Porto.
“A música latina, no geral, sempre foi a música popular de todo o mundo; é a minha perspetiva”, confessa Edgar. “A música latina sempre foi algo muito popular e com a qual as pessoas se identificam muito. No Porto, então, é uma tradição geracional”, diz, recordando como estava sempre a ouvir música latina em casa dos avós, apesar de revelar que não tem grande jeito para dançar salsa.
A responsabilidade de não ser misógino Em novembro do ano passado, foi publicado um artigo na revista multimédia, Interruptor, da autoria de Rute Correia, onde eram analisadas as letras de 40 artistas de rap e quantificada a misoginia no hip-hop tuga. Na classificação geral de misoginia por número de palavras surgia, no terceiro lugar, o Conjunto Corona.
Questionámos os músicos sobre este artigo e se teve alguma influência na criação de G de Gandim, ainda para mais sendo este um disco criado sob o signo de um estilo musical onde diversos músicos, como J Balvin ou C Tangana, já foram acusados de ser misóginos.
David, que na sua conta pessoal de Twitter já tinha reconhecido que, no passado, tinha escrito letras das quais se arrependia, reconhece que este disco “é o completo oposto dessa mensagem”. “O discurso mudou com o tempo, já não existe nenhuma referência machista. Nunca o fizemos de propósito, mas, com o passar do tempo e o nosso crescimento pessoal, decidimos que íamos abandonar essa atitude e ter mais cuidado para não cair nesse rótulo”, explica.
Responsável pelas letras, Edgar confessa que, uma vez que não é um grande internauta, apenas foi avisado por terceiros da publicação do artigo e admite que é importante existirem estes debates. “Se alguém se sentir ofendido, quero ter uma conversa com essa pessoa. Para nós não existe drama. Respeito essa questão e ainda bem que se fala cada vez mais desses temas. Não deve haver temas tabu”, afirma o rapper.
Quando confrontado com o facto de que este disco continua a adotar uma linguagem crua, por exemplo, ao mencionar “putas de origem cubana no Zimbabwe”, este refere que não existiu qualquer tipo de vontade de ofender, explicando que esta é apenas uma referência à música Passeio do produtor e músico PZ, também dono da editora Meifumado, onde o Conjunto Corona lançou os seus primeiros discos.
“É bom darmos o exemplo e não alimentarmos esse tipo de discurso”, elabora David Bruno. “Nem em jeito de brincadeira gosto de abordar esses temas e, na minha opinião, acho que os artistas não devem contribuir para isso, nem enquanto personagens”, mencionando o seu Corona.