AAlemanha prepara-se para mudar, mas com muita, muita calma. Com Angela Merkel fora de cena, entra em jogo a chamada coligação semáforo, entre o Partido Social-Democrata da Alemanha (SPD, em alemão), os Verdes e o Partido Democrático Liberal (FDP), uma coligação sem precedentes, talvez até mais tensa do que foi a ‘Geringonça’ portuguesa – mas tem ao leme Olaf Scholz, ministro das Finanças de Merkel, um dos rostos mais centristas do SPD, conhecido como um pragmático, predisposto a obter compromissos entre os seus parceiros, diametralmente opostos em quase tudo. Com negociações fechadas, a nomeação de Scholz como chanceler é quase uma formalidade, que deverá ser resolvida dentro de semanas.
Mas, afinal, o que é que a coligação semáforo pode significar para os alemães? Mudança, mas com calma, como referido. Haverá a aceleração da transição energética, um afastamento das políticas de austeridade de Merkel com a subida do salário mínimo para 12 euros à hora – para grande desgosto dos liberais, que ainda assim conseguiram bloquear o imposto para milionários e bilionários que constava tanto no programa do SPD como dos Verdes – e um posicionamento mais duro em relação à Rússia e a China.
Por mais ligeira que seja, os alemães certamente sentirão a diferença. Nem que seja estarem em cima da mesa temas como a legalização da marijuana, das poucas coisas em que sociais-democratas, verdes e liberais concordam. É algo dado como certo, tendo representantes destes vários partidos garantido ao Funke que estavam a estudar «introduzir distribuição controlada de canábis a adultos para propósitos recreativos em lojas licenciadas».
Leia-se, coffeeshops alemães, semelhantes aos que fazem as delicias de residentes e turistas nos Países Baixos. Foi algo que, desde a legalização da marijuana, em 1976, criou toda uma nova tradição, subcultura e perceção quanto a este país. Caso a Alemanha siga o exemplo holandês, a estimativa do Instituto Económico Alemão, de Colónia é que isso possa criar 2,5 mil milhões de euros em receitas por ano.
Quanto a outro tema do quotidiano, a novidade é não haver novidades. Antevia-se que as autoestradas – autobahn, em alemão, as primeiras do mundo, que são vistas como quase sacrossantas por muitos, símbolo da recuperação do pós-guerra, apesar da associação com o esforço de guerra nazi – passassem a ter limite de velocidade, sendo que hoje só o têm pontualmente, em condições meteorológicas adversas.
Trata-se de uma proposta acarinhada pelos verdes, sendo 60% dos alemães favoráveis a um limite de 130 km na autoestrada, segundo uma sondagem recente do canal estatal ARD. No entanto, é algo que já foi tirado de cima da mesa nas negociações de coligação, por pressão do FDP, muito próximo da poderosa indústria automóvel alemã.
«De onde quer que sejas no mundo, quando pensas na Alemanha pensas: ‘autobahn’», assegurou Ola Källenius, nascido na Suécia e dirigente da Daimler, empresa-mãe da Mercedes-Benz, citado pela Fortune. «Porque os consumidores pensam que os carros alemães devem ser melhores construídos para aguentar as altas velocidades, psicologicamente torna-se um selo de aprovação», explicou.
Para outros, trata-se de uma questão ideológica. Não haver limite de velocidade nas autoestradas alemãs «tornou-se uma espécie de causa mascote», notou Giulio Mattioli, investigador de política de transportes na Universidade Técnica de Dortmund, à DW. «É fetichizado por alguns como símbolo de ‘verdadeira liberdade’», num país que consideram ter demasiadas restrições, esclareceu o investigador.
Já as propostas da coligação para a digitalização, um dos outros raros tópicos onde há concordância, sendo algo apontado como prioridade, podem ter um impacto maior no dia-a-dia dos alemães do que seria de imaginar.
Pode influenciar «todas as formas de trabalhar, que na Alemanha ainda são surpreendentemente arcaicas em relação mesmo a países como Portugal», menciona Madalena Meyer Resende, investigadora do Instituto Português de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa (IPRI-NOVA).
«Por exemplo, a comunicação entre Ministérios ser muitas vezes feita por fax é uma coisa que faz confusão. Ou o facto da comunicação entre os bancos e os seus clientes também ser feita em papel», nota a investigadora. «Pensamos na Alemanha como um país hiperdesenvolvido, e é. Mas a sua revolução digital não tem sido das mais bem-sucedidas».
Clima e tensão
Não há dúvida que a transição verde será o foco do próximo Governo alemão, de tal modo que quer um superministério do Clima, Energia e da Economia e do Clima, colocando-o na mão dos verdes. Mas, mais uma vez, com calma. A última central elétrica a carvão fechará oito anos mais cedo que o previsto, mas só até 2030. Por essa altura espera-se que 80% da energia venha das renováveis, quando a anterior meta era apenas 65%. Sendo que centrais nucleares – a oposição a esta energia na Alemanha é feroz, sobretudo entre verdes – irão continuar a ser desmanteladas, como previsto pelo anterior Governo.
Nesse ano de 2030, quem ande por estradas alemãs deparar-se-á recorrentemente com veículos elétricos. A ideia é ter pelo menos 15 milhões, sendo que hoje existem um total de 48 milhões de carros na Alemanha. Trata-se de uma aposta surpreendente, tendo em conta a presença do FDP no executivo – analistas apontam que a própria indústria automóvel alemã compreendeu que, se não reconhecer que o fim dos motores de combustão está a chegar, vai acabar por ficar para trás.
Já no que toca à presença da Alemanha na arena internacional, o paradigma também está a mudar. Estranhamente, a exigência de uma posição dura contra a China – após anos em que Merkel tentava fazer da Alemanha e da UE uma espécie de intermediário entre Pequim e Washington – vem dos verdes.
Não é o género de temas que à partida associemos a um partido verde. «Eles têm alguma tradição em serem intransigentes nas questões de direitos humanos», diz Meyer Resende. «Mas o pró-atlanticismo, uma posição mais alinhada com os EUA, é uma coisa nova no partido».
No entanto, isso é algo que poderá ser crucial, num momento em que cada vez mais se debate a perspetiva da Europa ganhar autonomia militar, de criar o tão falado exército europeu – algo que não agrada nada aos EUA, arriscando tornar a NATO obsoleta.
Nos últimos anos, tem sido o Presidente francês, Emmanuel Macron, a propor isso, enquanto Merkel o bloqueava. No entanto, quem se prepara para se instalar em Berlim é Scholz, que faz questão de salientar que quer uma aproximação a Paris, e cujo partido é favorável a um exército europeu. Os seus parceiros de coligação é que poderão não achar piada nenhuma. Mas essas tensões interna serão a grande questão da política alemã nos próximos tempos.