1. Tal como um homem que partiu uma perna e nunca mais se libertou da muleta – era assim que o grande europeu Charles de Gaulle descrevia a Europa do seu tempo, dependente do bordão americano. E hoje? Hoje, em que a China parece ameaçar a hegemonia aos EUA, a Europa é uma ausência dramática. A bengala tornou-se viciosa. Confiar a segurança e o concerto das nações ao padrinho americano já não funciona. Pelo contrário, chega-nos dele o que nos enfraquece as resistências.
2. Até quando a Europa se demitirá do papel que a História e a civilização lhe impõem no mundo? Quando se assumirá como um fator de equilíbrio dum multilateralismo que gere a cooperação, a paz e o progresso global, como – designadamente – as nações da Ásia esperam? Até quando recusará a oportunidade de rejuvenescimento que a disputa entre as duas superpotências lhe oferece e exige?
Como escreve Gerard Arnaut no semanário liberal francês Le Point, «a Europa não tem nada a ganhar alinhando com a política americana de enfrentamento e mitigação do peso da China no mundo».
3. Os EUA fizeram de toda a zona do Indo-Pacífico, de Nova-Deli a Los Angeles, o cenário de um gigantesco jogo de xadrez. Perante a ascensão imparável da China, Washington explora a inquietação que ela suscita nos vizinhos, fazendo acordos de colaboração cujo objetivo é constituir uma barreira à influência chinesa e à cooperação económica com ela. E estabelece mesmo alianças militares, como agora com o Reino Unido e a Austrália, com as quais concluiu um contrato de armamento em que ‘passou a perna’ à França. E eis a China posta no papel da URSS, que por muitas razões (inserção no mundo, motor da economia global, civilização e História) não é de modo nenhum o seu.
4. A Europa e os seus Estados têm de se libertar do síndrome do passado e interrogar-se no novo que se desenha. O choque das duas superpotências terá inevitavelmente consequências em todo o planeta. E impõe-se à Europa o diálogo direto com Pequim. A diplomacia é a arte do diálogo e do consenso – e a China é uma cultura, uma mundivisão do compromisso.
5. O século XXI será decididamente chinês, lê-se num editorial do mesmo Le Point. «O sucesso chinês interroga-nos. Na hora em que as nossas velhas democracias duvidam cada vez mais delas próprias, minadas pelo wokismo, o populismo (de esquerda ou de direita), o indigenismo, o descolonialismo, os índex, etc., bestialidades made in USA», que a nós nos chegam agora também pela CNN, recebida com bacoca festança autofágica, como, o único, escreveu José António Saraiva.
6. Não somos a China. Temos a nossa história e civilização, percurso político e tradições próprias. Mas devemos aprender com a China. Tal como a China aprendeu e aprende connosco, «muito mais do que se pensa», como nota Franz-Olivier Giesbert. Desde logo, observar e compreender com objetividade «um sistema que aparentemente funciona melhor do que o nosso nalguns domínios. Perceber por que põe em causa a nossa velha ideia segundo a qual não haveria desenvolvimento económico sem o estrito modelo político que temos. E não há um único domínio onde não procurem investir, enquanto nós vamos abandonando quase todos». «Digital, saúde, transição ecológica, educação… é preciso alcançar rapidamente o que realizou o iliberalismo chinês nessa corrida». E, sem ceder no nosso modelo, segui-los na correção da derrapagem (entre nós muito maior) do capitalismo produtivo, que eles importaram do Ocidente sem complexos. «O capitalismo de características chinesas», onde, como proclamou Deng, «uns têm que enriquecer primeiro», mas todos têm de ter o seu quinhão. Correção que as disfunções do nosso modelo ou os políticos que elegemos não deixam realizar.
Pode considerar-se a China um ‘sistema rival’; mas é absurdo e um erro considerá-la um inimigo.