Por Miguel Faria Ferreira
I. Amã
Os muros ruinosos das dependências do Palácio Omíada, na Cidadela, remetem para a ruína de um curto califado, de que por ignorância se sabe pouco. Não durou cem anos sequer, caído às mãos dos abássidas, e o seu maior legado, para quem se fica pelos nomes das coisas, é uma grandiosa mesquita em Damasco, onde repousa a cabeça de São João Baptista. Não repousaria ali, se Salomé não dançasse tão bem, ou se o Rei não se tivesse deixado seduzir pela lascívia que envolvia a corte, o que agora não importa nada. Não estamos em Damasco: estamos no topo da Cidadela de Amã, separada da capital síria por 175 quilómetros e por dez anos de desastres, distância que um telefonema real e amigável não apaga de imediato.
Aqui de cima, subidos os muros da Cidadela, vejo baixar-se o sol sobre uma cidade de blocos beges, e sozinho, como sozinhos estamos todos perante esta imensidão, mesmo o Rei se agora aqui estivesse, e não fechado atrás das barreiras de Raghadan, sozinho penso nos filmes que vi e nas cidades que eles representaram, que se parecem com isto. É aquilo a que se deu o nome de ‘memória involuntária’, embora suspeite que a maioria delas o são, o que retira utilidade ao conceito e serve para desculpar escritores que se perdem. Estas ruínas de tantos tempos, que são palácios, templos e muros em decadência, e que dão vista sobre Amã, são também para mim uma espécie de Angkor Wat, e eu sou um cantonês que os atravessa, passo por entre portas abertas como Tony Leung, ouço uma música que não toca, vejo as árvores escassas para onde poderia sussurrar um segredo, como Leung em In the Mood for Love, e não o faço. Num país em que o Rei combate os terroristas do ar, garante a paz nas ruas, e interpreta papéis em Hollywood, estão reunidas as desculpas e a legitimidade para se ser cinéfilo. O meu assobio de Umebayashi ou de Nat King Cole só se cala porque o muezim chama para a oração, e o seu apelo transmitido por altifalantes contagia a cidade inteira, desde as zonas ricas aos bairros menos seguros, e também o Templo de Hércules, na Cidadela, que tem esse nome porque, pela sua dimensão, só poderia ter sido dedicado a Hércules, critério tão bom como outro qualquer para dar nomes às coisas.
«Deus é grande», o cântico que faz levantar os bandos de andorinhas e os punhos dos poucos turistas munidos de telefones que filmem a ambiência única deste lugar. Deus é grande e eu sou pequeno, já dizia o taxista que nos apresentou a Amã, quatro da madrugada passada, aproximada a hora da primeira oração, não sem antes se negar a levar-nos ao que o seu preçário apresentava como ‘Iraqi border’. Ficamos por aqui, então, que temos tantas coisas por nomear, e sejam todos bem-vindos ao Reino Hachemita da Jordânia.
II. Petra
Existem muitas histórias, e muitas formas de descobrir e falar sobre a história. Petra foi a capital dos nabateus, e nem por isso sabemos mais sobre ela do que o seu nome, os efeitos da luz do sol na cor das suas pedras, e a voz e os cheiros dos beduínos que nela se movem, pastoreiam e fazem negócio, e que não estavam aqui ou em parte nenhuma quando Trajano conquistou a Nabateia. Se quisermos saber a história do que envolve os mosteiros e as inscrições cravadas nestas rochas, talvez seja mais importante – e talvez não – ouvir o que têm a dizer os que viveram nas caves de Petra até há muito pouco tempo. Digo ‘e talvez não’ porque, se a história dos manuais é falível, tão ou mais falível pode ser a das gentes, e mesmo assim ela pode toldar-nos a convicção. É a história contada na primeira pessoa, que é conhecida por ser a mais emocional, chorosa, teatral, vocacionada para convencer.
Quão imaculados podem ser os reis das nações tribais e dos mapas atribulados? Nunca se chorou tanto como no funeral do Rei Hussein – minto: também morreram Nasser e Rohmeini – e, no entanto, quantos ressentimentos não lhe guardam os que aqui para baixo, perto daquilo que mais comummente se chama de ‘as arábias’, foram afastados das suas caves e realojados em bairros condenados a ser estância turística da sétima maravilha do mundo? No Sul do Marrocos, diziam-me os berberes zangados que Mohammed VI nunca descera de Marraquexe. Não direi, pois, o que se fala em Petra acerca de Abdullah (bin Hussein), que aparenta apesar de tudo ser o estadista e comandante-em-chefe mais capaz do Médio Oriente. Existem muitas histórias, e talvez seja mais importante ouvi-los, aos novos e aos velhos que enchem o Siq (o desfiladeiro) de Petra, que por ali desfilam, de olhos pintados (dê umas voltas quem se surpreendeu com as pinturas dos homens de Kabul), cada um concentrado no seu trabalho de sedução, talvez seja mais importante isso do que descobrir o que dizem as inscrições monacais, e quantos camelos passaram em tempos pelo buraco desta agulha (ouve-se «caravanas de três mil camelos»).
O Coronel Lawrence não recebeu as insígnias e as vestes por conhecer as datas e por servir os governos, e também não foi por isso que Gertrude Bell reinou sobre o deserto. Bem ou mal – mesmo que por vezes muito mal – foi porque, entre as tribos, fizeram da comunicação e da compreensão a sua arte. Não podemos passar no desfiladeiro, enquanto o sol nasce e os passarinhos chilreiam, sem imaginar os planos de Werner Herzog e de David Lean, a harmonia que deles emana e que para aqui se transmite, porque Petra e o imaginário de Petra já se fundiram de uma vez para sempre, e mais quando as pedras se avermelham, que é quando quase se esquecem todas as atribulações. Porém, o mundo arábico da régua e esquadro, que vem de quando os hachemitas perderam Hejaz para a Casa de Saud, e de quando esta uniu o Reino da Arábia Saudita (o ‘Kingdom’), já não tem espaço para outro Lawrence e para outra Bell, porque estamos numa nova era, a das maletas de dinheiro, dos punhais envenenados e das torres de marfim. É a era que permite aos beduínos de Petra sobreviver do turismo como de gotas de água, enquanto sufocam lentamente pelo excesso de oferta, enquanto o sol nasce no desfiladeiro, os passarinhos cantam e a pedra vermelha é embelezada pelas sombras, criando luz ambiente para o fim de qualquer coisa, porque não são só os nabateus que acabam.
III. Madaba
«Where do you go? There is nothing that way!», grita-me de longe o pobre rapaz que me serviu um café turco e que cisma pela noite de Amman, tão perto de Madaba, mas tão inacessível para quem está destinado a nascer, viver e morrer no mesmo sítio. É precisamente por aqui que quero ir, é que vi que a rua se chama ‘Estrada de Damasco’ (ou Rua de Damasco, o que não serve qualquer propósito literário). Embora pareça não levar a parte alguma, servindo apenas de fronteira à cidade, com os seus montes de terra convertidos em lixeira e as tendas dos beduínos que fazem fogueiras, tem nome de reduto da conversão, logo aqui, onde ninguém se pode converter.
Deixemos de lado tudo aquilo que se pode ver se seguirmos pela Estrada de Damasco e continuarmos a contornar Madaba pelos subúrbios: uma cidade não tão limpa assim que tem o seu centro adornado em nome do turismo, crianças que brincam na terra em que os pais assentaram tendas, homens solitários de keffiyeh fazendo frente ao sol, mulheres de burka não fazendo frente a nada, fotografias de Saddam Hussein, fotografias por todo o lado, nas lojas, nos carros, e o amor por Saddam na boca sempre que lhes pergunto porquê, e é «pelo bem que fez à Jordânia». É noutra questão que penso: «e se mudarmos de religião?».
O que acontece se mudarmos de religião, na cidade de Madaba, que tem trinta por cento de cristãos, e que fica perto de Betânia-além-Jordão, onde São João batizou Jesus de Nazaré, o que acontece se nos tropeça o cavalo e se virmos a luz numa estrada perdida, enquanto torramos a cabeça ao sol? Como com os beduínos esquecidos de Petra, interessa-me ouvir as histórias dos cristãos em «terras da tolerância», e nada do que têm a dizer-me abona propriamente a favor do Reino. À semelhança de todas as segregações bem sedimentadas, não existe sequer um problema legal, e o diabo está nos detalhes funcionais da administração pública islâmica e na sensibilidade islâmica da maioria do povo que dela se serve. Pois, bem, e o que acontece se mudarmos de religião, o que acontece se um dia quisermos deixar de ser parados pela polícia na estrada por ostentar a cruz de Cristo, ou, ao contrário, se quisermos ingressar na comunidade que reza missa em árabe numa igreja modernizada, implantada sobre sete igrejas antigas, vitimadas por outros tantos sete terramotos? «Não podemos, somos denunciados pelos nossos nomes e pela história da nossa família», mas então, pergunto, embora saiba que a resposta não pode ser direita, e os encontros entre o Rei Abdullah e o Bispo de Roma, então e a promoção da tolerância e os sorrisos diplomáticos de um mau diplomata? Não direi nada sobre o Rei, mas sobre o homem de branco não lhes sai melhor do que «damn, Francis!», ao que penso que lhes restarão talvez as catacumbas, e que as catacumbas não são para todos. Não seriam certamente para mim, a mim não me apanham lá, que eu não fui feito para isto e a Estrada de Damasco não me levou a lado nenhum.
«(…) Nothing to see that way, Michel!», estavas certo, meu bom amigo, espero que os teus conselhos sejam pagos em dobro, mas por agora vou continuar, que o meu corpo ainda me dá licença, e muitas coisas já eu vi.