O senhor Paulo, o senhor Pedro, o senhor Carlos e o triunfo da parolice

Assim, se compreendo que alguém com uma certa idade e que foi tratado toda vida por senhor Alberto ou dona Albertina me trate por senhor João, já considero uma parolice grosseira que aqueles que tiveram as oportunidades de se instruir negadas aos seus pais me tratem por senhor João.

Por João Cerqueira

Desde há uns tempos, os apelidos das pessoas desapareceram. Um cidadão chamado Carlos Delgado passou a ser tratado, nos locais de atendimento ao público, num contacto telefónico ou num chat de resolução de problemas, por senhor Carlos. Pouco importa se o referido cidadão é médico, catedrático ou apenas tem a quarta classe. É o senhor Carlos. Tratá-lo por senhor Delgado ou senhor Carlos Delgado, independentemente do seu grau de escolaridade, deve ser muito complicado ou exigir demasiado esforço.

Eu, por exemplo, já não passo do senhor João quando sou atendido por meninas simpáticas, senhoras mais velhas ou cavalheiros que, à primeira vista, parecem civilizados. Por vezes, tento explicar que prefiro que me tratem apenas por João ou então, por obséquio, senhor João Cerqueira – dispenso títulos académicos – mas, quase sempre, a pessoa em causa olha-me desconcertada como lhe tivesse dito que viera de outro planeta. Está para lá do seu entendimento a boçalidade do seu comportamento, pois julga estar a ser educadíssima.

Se o tratamento a eito por doutor, nomeando assim qualquer semianalfabeto com um diploma, se torna caricato, o tratamento por senhor Paulo ou senhor Pedro roça o grotesco.

E para tornar o caso ainda mais absurdo, entre as crianças tornou-se agora moda uma forma de tratamento mais sofisticada do que a dos adultos. Assim, a menina Joana de sete anos ou o menino Ricardo de nove passam ser, respectivamente, a Joana Rendeiro e o Ricardo Espírito Santo. Enquanto os adultos se infantilizam, as crianças adquirem uma solenidade cómica.

Este tratamento de senhor Carlos e senhor José remonta a um tempo onde as divisões sociais eram mais profundas. Eram assim tratados o carpinteiro, o pintor, o homem do lixo – a base da pirâmide social. No meio, estavam os comerciantes, os agentes técnicos e funcionários especializados que já tinham direito a apelido: o senhor Maciel da loja das meias e o senhor Pereira agente de seguros. E, no topo, os bacharéis e os doutores,  tratados com o respeito que o seu título merecia: o doutor Laranjo, por exemplo. Não por acaso, as mulheres, independentemente da sua condição social, também raramente tinham direito a apelido: a dona Ana ou, à moda do Porto, a «sedóna» Ana.

E eis que chega o século XXI e os filhos do senhor Jorge picheleiro, do senhor Joaquim trolha ou da Guida das castanhas vão para as universidades e tornam-se doutores. O problema é que durante o seu percurso escolar ensinaram-lhes tudo menos as regras básicas de etiqueta – a tal cidadania coxa -, tais como não tratar o professor por você ou ignorar os apelidos. Aprenderam a não discriminar os seres humanos por causa das suas diferenças, mas não sabem como se lhes dirigir. E os próprios, convencidos de terem entrado no foguete da ascensão social, tão pouco quiseram aprender essas regras elementares de boa educação aterrando apenas no planeta dos novos-ricos burgessos.

Assim, se compreendo que alguém com uma certa idade e que foi tratado toda vida por senhor Alberto ou dona Albertina me trate por senhor João, já considero uma parolice grosseira que aqueles que tiveram as oportunidades de se instruir negadas aos seus pais me tratem por senhor João.

Tratem-me por pá, por tu, por gajo, mas, jamais, por senhor João.

Muito obrigado.