Will Smith. O livro onde o “astro” enfrenta o “cobarde”

Temos sempre várias “camadas”. Há sempre mais coisas para conhecer e, atrás de um sorriso contagiante, pode estar uma história de abusos, traumas e insegurança. Will, o livro autobiográfico de Will Smith, vem colocar a nu o seu passado, provando que, de cobarde, qualquer um se pode transformar num astro. 

Para quem o acompanha desde a década de 80, onde começou como rapper, não será descabido afirmar que estamos perante um dos homens mais carismáticos do mundo. Desde músicas, a filmes, documentários, palestras motivacionais, Will Smith tem-se desdobrado para inspirar e “mudar” o mundo. A sua mais recente “contribuição”, que já tem feito correr rios de tinta nos meios de comunicação em todo o mundo, está escrita naquele que é agora o seu livro autobiográfico, Will, lançado no dia 9 de novembro deste ano. 

Talvez por impressionar por dois motivos: o artista já precisou de ser ajudado, por isso, sente-se na necessidade ou considera ter a missão de fazê-lo com os outros. Segundo, o seu sentido de humor, a sua forma brilhante de dar vida aos papéis, fazem-nos sentir que já o conhecemos. Em Will, o ator coloca-se a “nu” e abre as portas do seu universo para que mergulhemos um bocadinho mais na sua vida repleta de sofrimento, erros, sucessos e relações. Uma composição de luzes e sombras que vai desde o momento em que pensou matar o seu pai à fase em que se deixou deslumbrar pela fama, às crises conjugais, à vontade de pôr fim à vida e à relação que mantém com os seus filhos. “Não sei qual a razão da minha existência, mas quero estar aqui por uma razão maior. Luto para ser como as pessoas grandiosas que já viveram”, confessa. 
 
O “pequeno” Will
Mas a verdade é que Smith sempre se considerou “um cobarde”, precisamente por não ter conseguido enfrentar o seu pai nos momentos em que este, alcoolizado, era violento com a sua mãe. O seu instinto era fugir. Algo muito diferente da imagem despreocupada, positiva e de sucesso que o ator projeta há 35 anos, desde sua primeira aparição nos ecrãs, graças à série The Fresh Prince of Bel-Air, em exibição de 1990 até 1996. “Neste ponto da minha vida, a autenticidade é muito mais poderosa do que o mistério”, admite o ator no seu documentário The Best Shape Of My Life. E por isso, a história começa precisamente em Filadélfia.

O também produtor cinematográfico cresceu numa bonita casa do bairro de Woodcrest. Filho de Caroline Bright, uma administradora do conselho escolar da Filadélfia, e Willard Carroll Smith, um técnico de refrigeração, o artista tem três irmãos e a família nunca sofreu de problemas financeiros, escolares ou de outro tipo. Algo que este admite ter contribuído para as constantes críticas que recebeu no início da sua carreira como rapper. “Eu não era nenhum chulo nem utilizava drogas”, afirma logo nas primeiras linhas, consciente de que o seu ambiente era “muito diferente daquele a que outros jovens negros estavam expostos nas ruas americanas dos anos oitenta”. Mas por mais que tudo indicasse que teria uma vida firme, essa posição foi-se desvanecendo à medida que  entrava na adolescência. 

O jovem Smith sabia que o seu pai era “violento e alcoólico” – Willard começou a fumar aos 11 anos e a beber aos 14 – mas não tinha noção do pesadelo em que ia viver até presenciar situações de violência física contra a sua mãe”. “Quando eu tinha nove anos, vi o meu pai bater na cabeça da minha mãe com tanta força que ela caiu. Vi-a cuspir sangue e esse momento, naquele quarto, provavelmente mais do que qualquer outro momento da minha vida, definiu quem eu sou”, confessa no livro com mais de 400 páginas. 

O impacto foi tão grande que chegou a influenciar na sua carreira. “Em tudo o que fiz desde então, os prémios e os elogios, os holofotes e a atenção, os personagens e os risos, havia uma subtil cadeia de desculpas à minha mãe por não ter agido naquele dia. Por faltar naquele momento. Por não enfrentar o meu pai. Por ser um cobarde”, admite o ator, reconhecendo que ao longo dos anos essa lembrança amarga não “abandonou os seus pensamentos”. O artista escreve que “o que se chegou a entender como ‘Will Smith’, o astro maior do cinema, é em grande parte uma construção, um personagem cuidadosamente elaborado e aperfeiçoado”, que ele mesmo desenhou para se proteger a si mesmo. “Para me esconder do mundo. Para ocultar o cobarde”, revela. 

Quando a sua mãe, Caroline Bright, se cansou dos abusos e foi embora, deixando Smith e os seus irmãos para trás, ele ficou vazio e vulnerável. “Ela foi trabalhar na manhã seguinte e não voltou”, conta. 

Aquele momento levou-o, mais tarde, a contemplar a possibilidade de matar o seu pai, “jogando-o das escadas abaixo”. A ideia esteve presente na sua cabeça até há bem pouco tempo, sobretudo enquanto cuidava do seu pai no período em que este teve cancro e os médicos lhe deram seis semanas de vida: “Uma noite, enquanto o levava com cuidado do seu quarto para a casa de banho, aquilo surgiu dentro de mim. O caminho entre essas duas divisões passa pelo topo das escadas. Quando era criança, sempre disse a mim mesmo que algum dia vingaria a minha mãe. Que quando fosse grande o suficiente, quando fosse forte o suficiente, quando já não fosse um cobarde”, confessa. “Parei no topo da escada e achei que poderia empurrá-lo e esquivar-me disso facilmente”, revelou o ator. “À medida que as décadas de dor, ira e ressentimento iam desaparecendo, equilibrei a cabeça e continuei a levá-lo para o banheiro”, relatou.

Depois da morte do pai, Smith tem refletido sobre a forma como lidou com a relação que ambos mantinham. “Não há nada que tu possas receber do mundo material que te gere paz interior ou satisfação”, reflete no livro. “Não importa o quanto os outros te amam. Só é possível encontrar a felicidade em função de como tu tiveres amado os outros”, escreve. “O meu pai era violento, mas também esteve em cada peça de teatro ou recital em que eu participava. Era alcoólico, mas estava sóbrio nas estreias de cada um dos meus filmes. Escutou cada disco. Visitou todos os estúdios de gravação. Graças ao mesmo perfeccionismo intenso com que aterrorizou a sua família, conseguiu pôr comida na mesa todas as noites da minha vida”, lembra o artista. 

Viciado em Sexo e Aberto no Amor Para além das relações familiares, Will Smith conta algumas das suas histórias amorosas que o levaram, muitas vezes, a lugares mais “negros”. No livro, Smith admitiu que se voltou para “relações sexuais desenfreadas” depois do seu primeiro relacionamento com uma rapariga chamada Melanie ter chegado ao fim.

“Eu fiz sexo com tantas mulheres e foi tão desagradável que desenvolvi uma reação psicossomática ao ter um orgasmo. Isso fazia-me engasgar-me e às vezes até vomitar”, conta, assinalando que não se cansaria de “experimentar” uma e outra vez com mulheres desconhecidas se com isso pudesse encontrar “a definitiva”. 

Na verdade, tudo que buscava era voltar a apaixonar-se. Contudo, as suas ações descontroladas resultaram num transtorno. “Eu esperava, pelo amor de Deus, que alguém conseguisse fazer aquela dor desaparecer, mas lá estava eu, com náuseas e desolado”, afirmou, revelando que só conseguiu virar a página quando descobriu os benefícios do sexo tântrico. “O que fiz foi limpar a minha mente e permitir-me saber que está tudo bem em ser como sou”, escreve o ator, que se reconciliou consigo mesmo após construir um relacionamento com aquela que hoje é sua companheira de vida, Pinkett Smith.

Ao seu lado, apesar de, nos primeiros meses depois que se conheceram, beberem álcool diariamente, o artista descobriu como viver um sexo “saudável”, embora depois a relação sofresse várias crises. “Começámos numa idade muito precoce”, conta, o que fez com que, depois de amadurecerem, desenvolvessem uma visão diferente do conceito de “relação”. Numa entrevista à revista GQ, em setembro, Will Smith já havia falado sobre o seu casamento. O casal passou por momentos complicados, mas nunca estiveram relacionados com casos extraconjugais. No passado, ambos já tinham afirmado fugir aos rótulos para definir a sua relação e, à GQ, o cantor revelou que a relação evoluiu. “Demos um ao outro confiança e liberdade. E o casamento, para nós, não pode ser uma prisão. Eu não recomendo este caminho a ninguém. Mas viver esta liberdade que acordámos e o apoio incondicional que damos um ao outro é, para mim, a mais elevada definição de amor”, disse o ator à GQ.

Essas declarações acabaram por deitar por água abaixo os rumores de que o casamento estaria por um fio depois de, em 2020, Pinkett ter admitido publicamente um caso com o cantor de R&B August Alsina anos antes – em 2019, a actriz já referira que não tinha sido “feita para viver um casamento convencional”. Nessa altura, Will Smith desvalorizou, e à revista americana, adiantou que a ideia de que “Jada era a única que tinha outras relações” era falsa. No livro, fica ainda a conhecer-se a violenta discussão que o casal teve a seguir ao aniversário de Jada, quando a atriz completou 40 anos: “O nosso casamento não estava a funcionar. Já não podíamos fingir. Estávamos ambos infelizes e claramente algo tinha de mudar”, explica. 

Esta última crise levou-o novamente para a beira do abismo. “Ele conquistou tudo o que sempre sonhou: carreira, família, negócios, saúde, estrelato e uma casa com o seu nome. Na verdade, era ainda mais e melhor do que ele jamais sonhou”, escreve Smith. “Como é que a minha vida poderia estar a desmoronar-se de novo?”. O casal acabou por ficar separado durante uns meses, acreditando que, só depois de conseguirem ser individualmente felizes, é que poderiam resgatar a relação. E foi o que aconteceu. Will Smith e Jada Pinkett Smith casaram-se em Dezembro de 1997 e têm dois filhos: Jaden Christopher Syre Smith, de 23 anos, que contracenou com o pai em Em Busca da Felicidade (2006) e Depois da Terra (2013); e Willow Camille Reign Smith, de 20 anos, que teve uma curta participação como filha do personagem de Will Smith em Eu Sou a Lenda (2007).

Uma limpeza espiritual Ao longo da obra assinada por Mark Manson, autor do êxito A Arte Subtil de Saber Dizer Que Se F*da, são ainda revelados episódios sobre a sua juventude, nomeadamente como passou de gravar raps numa cave para ser o primeiro artista de hip-hop a ganhar um Grammy ou a maneira como estourou todo o seu dinheiro. Já a sua chegada a Los Angeles, onde acabaria por ir a uma audição para o elenco de O Príncipe de Bel-Air, a série que o levou às luzes da ribalta, deveu-se a um pequeno traficante de droga (foi este que lhe emprestou o dinheiro para a viagem).

A última parte do livro transporta os leitores até ao retiro espiritual realizado recentemente pelo artista. “Sou viciado? Não uso drogas, quase não bebo e também não sou viciado em sexo como uma hiena. Porém, não sabia como parar, como ficar quieto, como me calar ou estar sozinho. Eu era viciado na aprovação dos outros e para ter certeza disso, estava viciado em vencer”, explica.

Foram necessárias 14 cerimónias de ayahuasca – um chá com potencial alucinogénico capaz de provocar alterações na consciência por um período de até 10 horas, usado para fins terapêuticos e rituais religiosos, como o Xamanismo e o Santo Daime – para o astro “sair do buraco”. “Tinha entendido mal a física da felicidade final. Pensei que poderia alcançar o amor e a felicidade baseado em vencer, conquistar, alcançar e adquirir”, confessa o ator. “Ser corajoso significa aprender a seguir em frente, apesar do terror”, conclui.