Entrámos na quadra mais frenética do ano.
Enquanto seguimos desvairados, ansiosos e mergulhados nos preparativos da consoada – as prendas de última hora, as iguarias para a ceia, o bacalhau a dez euros o quilo -, pouco tempo dedicamos a pensar no quão afortunados somos. “Nem sempre sabemos a sorte que temos”, bem lembra a Santa Casa.
Ainda que, para muitos de nós, seja um tempo de cor, brilho e alegria, para tantos outros, o Natal é só mais uma noite de dor, dura e triste. Talvez até ainda mais pesada do que as outras.
É o caso das mais de 8.200 pessoas sem abrigo, que vivem pelas ruas e ruelas de norte a sul do país, mais de metade na Área Metropolitana de Lisboa. A maioria são homens entre os 45 e os 64 anos, apesar de o número de mulheres e de casais ter vindo a aumentar. Entre os principais motivos de perderem o teto está o desemprego, a precariedade no trabalho, a insuficiência financeira, e as dependências. Para este grupo extremamente fragilizado, sem lar e sem família, uma refeição digna apenas tornará a noite suportável. Invariavelmente, negra.
Com teto, mas pouco mais, estarão os cerca de dois milhões de portugueses que vivem abaixo do limiar do risco de pobreza. Em 2020, uma em cada quatro famílias com um ou mais filhos era considerada pobre. Isto, num país desenvolvido que o governo diz que bate recordes de crescimento económico. Onde estaríamos se estivéssemos em rota de empobrecimento e com elevado nível de endividamento…
Os números da pobreza recuaram uns pontos percentuais em relação às últimas duas décadas, mas pouco consolo representarão estas “melhorias” para 20% da população para quem a grande conquista é ter alguma comida na mesa. Uma consoada é uma ambição incomportável. Um Natal de cor esbatida.
Portugal continua a ser um país muito envelhecido, mesmo depois do flagelo da Covid-19, que ceifou um grande número de vidas entre os mais velhos. Existem mais de 42 mil idosos que vivem sozinhos, isolados, sem familiares nem cuidadores associados. Na quadra da família, esta existência esquecida é emocional e psicologicamente mais intensa, mais perversa, mais injusta. Um cenário sombrio e cinzento.
Em 2020, atingimos o número mais baixo de adoções dos últimos anos. Das 537 crianças sinalizadas para adoção, apenas 182 conseguiram dar seguimento a um novo projeto de vida. Todas as outras, vítimas indiretas da Covid-19 e da consequente incapacidade de resposta do Estado, continuam no “sistema”, com a vida suspensa, à espera de uma oportunidade. Será fácil imaginar que, em vez de carros, consolas ou bonecas, uma família será tudo o que gostariam de receber no sapatinho. Qualquer que seja a sua cor.
No Natal, evocamos a paz, o amor e a harmonia. Tudo o que queremos que nos rodeie. Mas esta não é uma realidade para todos.
No último ano, foram abertos mais de 66 mil processos que exigiram a intervenção das comissões de proteção de crianças e jovens, fruto do elevado número de denúncias de violência em contexto familiar. Na maioria dos casos, os agressores são membros do agregado, pelo que é fácil deduzir que o contexto pandémico não favorece a melhoria da situação em que vivem estes jovens. Pelo contrário, agrava-a substancialmente. Tal relação causa-efeito não foi, contudo, suficiente para impedir que a tutela encerrasse um quinto das comissões de proteção do país durante a pandemia. Sem a vigilância das escolas nem de outras comunidades de suporte, cabia ao Estado garantir a manutenção e o reforço das medidas de controlo e proteção. Em vez disso, reduziu a sua ação. O que é manifestamente incompreensível e – se fossem conhecidos os números reais saber-se-ia – extremamente prejudicial.
Também contra adultos, este ano tem sido duro no que toca a violência doméstica. A Rede Nacional de Apoio às Vítimas de Violência Doméstica atendeu mais de 30 mil pessoas nos primeiros nove meses de 2021, e acolheu diretamente duas mil. Até outubro, morreram em Portugal 19 pessoas, 1.140 estavam presas pelo crime de violência doméstica (905 na cadeia e 235 em situação de prisão preventiva). Números negros como a dor que representam.
Um Natal sem cor terão ainda todos aqueles que o passam em doença, na angústia de sofrer ou acompanhar, ou absorvidos pela mágoa da perda de familiares e amigos próximos.
O Natal tem vários tons, fruto da vida e do momento. Churchill dizia que “o Natal é um tempo não apenas de alegria mas também de reflexão”. Concordo em absoluto. Ainda que poucas vezes tenhamos tempo para dedicar tempo a pensar sobre onde estamos. Mas olhando para os outros, provavelmente conseguimos ver-nos melhor.
Que este não seja entendido como um texto amargo ou gravativo. Mas antes da luz e da esperança que a gratidão concede.
E que, para todos e em todos, se cumpra o Natal. O Natal possível.