«O meu pai é que sempre nos motivou e se estou nisto, no mundo da culinária, é por ele. Dedicava-se completamente à cozinha portuguesa – salgados e doces – e aprendemos com ele. No princípio, éramos pequeninos, ele folgava ao fim de semana e fazia uns petisquinhos com os quais nos deliciávamos», começa por explicar, em declarações ao Nascer do SOL, António Carlos Silva, um dos filhos de António da Silva – chefe Silva – que ficou conhecido não só pela vocação que tinha para confecionar os mais diversos pratos como pela fundação da revista TeleCulinária.
«Por exemplo, ele pegava em bacalhau demolhado, tirava-lhe a pele, assava-a e comíamos essa iguaria com pão. O prato favorito dele era sardinhas e perdia-se também pelos arrozes», avança, recordando que, enquanto criança, não tinha consciência da importância que esta arte viria a assumir na sua vida. «Só sabia que gostava daquilo que ele fazia».
No entanto, à medida que foi crescendo e sendo introduzido a amigos do pai, como aqueles que partilharam a infância com o mesmo em Caldelas – vila no município de Amares, no distrito de Braga –, entendeu que a comida tinha mais magia associada daquilo que pensara. «Além do gosto em termos de paladar, tomei o gosto no coração. A minha área é Artes, tirei Escultura, mas a gastronomia é um bichinho fantástico», diz o homem de 58 anos que lamenta a perda progressiva de tradições.
«A nossa cozinha e a nossa doçaria estão muito influenciadas pelas tradições castelhanas. Por exemplo, fazemos a deglaçagem, para refrescar um refogado, com vinho branco. O português, e vê-se isso, no livro de receitas da infanta D. Maria, é com vinagre. É só um borrifozinho, mas dá um sabor muito particular e é isso que faço», declara, adiantando que «sai diferente e não tem rigorosamente nada a ver com o vinho».
Mas António exemplifica esta situação recorrendo também à feijoada, frisando que neste prato o vinagre assume igualmente um papel relevante. «Perdemos muito essa nossa característica». O cerne da questão é que esta descaracterização do modo de preparação dos alimentos tem vindo a alastrar-se às diferentes vertentes da gastronomia. «Em relação aos doces conventuais, é preciso clarificar as coisas: temos uma grande doçaria porque temos uma gigantesca da nobreza», diz, referindo-se a receitas como as dos bolos Conventual de Amêndoa ou do Manjar do Abade.
Tal aconteceu porque «nas famílias mais abastadas, só a filha mais rica é que casava e tinha um dote maior. As mais novas ingressavam todas em conventos. Levavam um dote mais pequeno, mas o receituário de família ia com elas», sendo que a este elemento aliava-se o facto de que, quando era criado um convento, o Rei doava um determinado número de terras à volta do mesmo e as freiras «tratavam delas com o maior cuidado e produziam muitas coisas».
«Como não havia frigoríficos, tinha de se conservar a comida com sal, secá-la, emergi-la em gordura ou açúcar» e, segundo António, algo que estas mulheres não apreciavam era o desperdício alimentar. Por isso, aproveitavam tudo como as pevides do melão. «Elas tinham o tempo todo do mundo, então, descascavam as pevides, tostavam-nas ligeiramente e passavam-nas em açúcar. Eram as pevides de melão cobertas».
No entanto, por decreto, somente elas podiam comercializar aquilo que produziam. Se os mesmos doces fossem feitos em conventos masculinos, eram apenas consumidos por quem lá estava. «Foi esse o motivo pelo qual se dedicaram principalmente à confeção de licores. Eventualmente, até seria um fator de discriminação porque a cozinha seria para as mulheres, mas não encontrei nenhum documento que explique o motivo. E é raríssimo encontrar um convento de homens a produzir doces para venda».
Queijada: uma iguaria com séculos de História
Porém, António acredita que é necessário recuarmos até à época Medieval para entendermos como surgiram matérias-primas para estes e outros marcos da cozinha portuguesa. «Os visigodos vieram do Norte da Europa e foram-se estabelecendo na Península Ibérica. O homem era um guerreiro e ia à terra santa guerrear contra os infiéis para ter benecesses em termos de gestão de território. E acontece uma coisa muito engraçada que vai ao encontro da nossa queijada: estamos a terminar um estudo que data do século VIII», diz, revelando que a Câmara Municipal de Mafra encontrou, no Penedo do Lexim, artefactos desta época, «uma espécie de meias canas que pareciam telhas antigas e tinham furinhos com resíduos».
A autarquia decidiu pedir aos arqueólogos que enviassem estes resíduos para análise e, surpreendentemente, o resultado foi lactose. «Esses artefactos serviam para fazer queijo fresco. E por causa disso é que somos o maior produtor de queijo fresco a nível nacional. É uma cultura local tal como a da criação de aves de capoeira», explica, compreendendo que o leite e os ovos já estavam a ser usados e só faltava outra peça-chave: o açúcar e a amêndoa.
«Só nos falta falar da comunidade judaica. A criatividade deles já cá havia, os árabes trouxeram o açúcar – porque já conheciam as canas – e a amêndoa. E, claro, isto leva a que pensemos na mulher cristã, pois enquanto o homem vivia para a guerra, ela vivia para a manutenção da cultura», esclarece, elucidando que temos de associar a riqueza dos então novos ingredientes às qualidades do género feminino: «Eram muito metódicas, certinhas e rigorosas».
Curiosamente, quando se celebram as festividades do Purim (palavra que vem do vocábulo hebraico ‘pur’, que significa ‘sorteio’, pois era de forma aleatória que Hamã, o primeiro-ministro do Rei Achashverosh da Pérsia, escolhia a data na qual massacraria os judeus – com o objetivo de comemorar a salvação dos judeus persas do plano de Hamã, para exterminá-los, no antigo Império Aquemênida –, é confecionado um doce à base de queijo fresco «muito semelhante à queijada».
É por esta razão que António está a encetar contactos com as comunidades judaicas de Portugal «para lhes dar a provar a queijada de Mafra e ver se terá alguma coisa de judaico». «Era fabuloso entender isto porque teríamos um produto unificador das três religiões e isso faz muita falta hoje em dia para que se unam as diversas vertentes da crença e do pensamento», aponta, observando que as quezílias entre religiões não se justificam porque «a crença é a mesma, a revelação é que foi em sítios diferentes e foi interpretada à luz da cultura local».
«O Deus é o mesmo e diz o mesmo. Temos muito mais em comum do que aquilo que nos separa. O que nos separa são os pensamentos e os preconceitos humanos e o que nos une é a verdade», afirma, contando que, nesta época natalícia, continua a vender os bolos juntamente com a esposa. «Durante o resto do ano, estamos numa bicicleta em frente ao convento. Vendemos as queijadas porque nunca foram uma peça de loja: eram vendidas em feiras, no burrito, etc. E o nosso burro é a nossa bicicleta e temos um cestinho para vender!», diz o proprietário da ’Docinhos de Santo António’ que, até dia 31 de dezembro, estará no Mercado de Natal em frente ao Palácio Nacional de Mafra.
«Tentámos Lisboa, mas estava muito cheia de projetos de rua e disseram-nos que não. E como vivemos no concelho, Mafra abriu portas ao nosso projeto de forma fantástica. Vendemos queijadas e bolachas de limão na bicicleta, enquanto aqui apostamos nos pastéis de feijão, nas broas de mel da Enxara dos Cavaleiros, as queijadas de Mafra, os pudins de limão de Mafra e temos uma compota que fazemos com limão da Achada», destaca, especificando que este citrino não é amargo e, ao contrário dos restantes, não tem um formato regular. «São todos diferentes. E são ácidos», continua, acrescentando que almeja valorizar não só a doçaria antiga de Mafra como os restantes produtos.
«Ninguém vive sozinho: temos de criar uma cadeia com quem vive ao nosso lado porque, quando fazemos um castelo de cartas, encostamo-las umas às outras. Se a pusermos oblíqua, cai sempre. Só ficamos de pé se encostarmos outro negócio do outro lado e assim sucessivamente. Construímos com muita calma um castelo de cartas muito grande», argumenta, dizendo que o cliente-tipo da empresa são os mafrenses, principalmente, os mais velhos que ainda se lembram das queijadas vendidas por Rosa Espanhola. «A última vez que vieram à rua foi em 1960 pelas mãos dela. Nunca a conheci, mas imagino uma senhora pequenina, magrinha, vestida à espanhola a vender tudo e fico embevecido. Depois, foi para a porta do Jardim do Cerco vender sanduiches aos militares».
«A receita dela é parecida com a nossa, mas esta é real, a bisavó delas todas porque é aquela que as famílias reais portuguesas foram produzindo. A queijada que comercializamos é precisamente a queijada que o D. João VI fez questão que as infantas aprendessem a fazer com uma senhora de Vila Velha» e, adianta, Tomás Maria António Francisco d’Assis e de Borja de Mello Breyner, 4.º Conde de Mafra, referia-se a ela como ‘queijada especial’ nas suas memórias.
As diferenças entre as queijadas de Mafra e de Sintra?
Em Sintra havia uma doceira que fazia esta especialidade, mas, de acordo com António, naquela região há duas grandes vantagens: criaram-se fábricas grandes para produzir a queijada e uma linha férrea. As vendedoras de queijadas iam a Lisboa vender aos lisboetas, os lisboetas começaram a gostar, «metiam-se no comboio e iam a Sintra comer as queijadas. Nunca houve um comboio direto para Mafra, era muito mais difícil», lamenta, constatando que as festas locais eram o ponto de venda das doceiras mafrenses.
«Depois, conforme iam falecendo, os descendentes viam as velhotas ter aquela trabalheira à frente de um forno a lenha quentíssimo, a suar por todo o lado… Havia trabalhos melhores e os receituários iam desaparecendo», lastima, recordando o dia em que um senhor lhe perguntou se tem o hábito de fazer doce de batata. «É que a minha avó era doceira. Todos os anos no Natal, sabíamos que íamos comer esse doce», ter-lhe-á confidenciado, sendo que, aquando da morte da senhora, com os restantes familiares, dividiu os pertences da mesma e, quando chegou o Natal, teve a preocupação de saber quem ficaria com a tarefa de pôr mãos à obra e confecionar o doce.
«Ele ligou para várias pessoas, empurraram uns para os outros e descobriram que deitaram fora o receituário. Uma das grandes lutas do responsável pela Quinta da Raposa, o Dr. Gandra, é que as pessoas não deitem nenhum papel fora», divulga, referindo-se ao Complexo Cultural Quinta da Raposa que se situa na antiga corredoura medieval, isto é, uma zona ampla exterior às muralhas, para onde a vila de Mafra se desenvolveu em primeira instância. «Deve o seu nome a José Joaquim Raposo, homem que foi agraciado com privilégios por D. Maria I e que aqui construiu a sua residência. O solar foi residência do arqueólogo Estácio da Veiga entre 1867 e 1875, altura em que efetuou diversas investigações na região, que deram origem ao primeiro estudo arqueológico do concelho, intitulado Antiguidades de Mafra». lê-se no site oficial da Câmara Municipal de Mafra.
«O que quiserem, entreguem na quinta para verem antes de irem para o lixo. É pena que desapareça porque ao desaparecer, desaparece a cultura e vamos perdendo cada vez mais coisas. Todo o papelinho, por mais insignificante que pareça, não deve ser deitado fora», salienta, frisando a importância do espaço onde estão integrados o Centro de Interpretação da Vila de Mafra – CIVIMafra, o Centro de Interpretação das linhas de Torres de Mafra – CILT, o Centro de Documentação Ernesto Soares e o Atelier de Artes Plásticas, e espaços cedidos a entidades exteriores: USEMA – Universidade Sénior de Mafra e Conservatório de Música de Mafra e a Casa da Música Francisco Alves Gato.
«Têm papelinhos, por exemplo, sobre a primeira feira organizada como feira em Portugal e tinha coisas muito engraçadas. Até animais exóticos, aquilo que se fez nos circos, a mulher barbuda, etc. para chamar clientes», lembra, indicando que «as pessoas não têm noção daquilo que deitam ao lixo» e, por isso, encontrou recentemente uma carta de uma senhora pertencente a uma família conhecida em Mafra que lhe pedia que «tomasse conta da receita porque tinha medo de que desaparecesse».
«Não nos interessa só ter as receitas: interessa-nos saber como chegaram cá. Não queremos ter uma receita sem saber o contexto em que foi criada. Descontextualizam, perde-se o fio à meada, mais tarde não se sabe aquilo que se passava… Enfim, é uma pena», assevera, recorrendo ao nascimento dos parrameiros, doces para romeiros, que, aquando da sua origem, eram intitulados de ferraduras para ilustrar esta problemática.
«Mas, na verdade, aquilo é um quarto crescente. A receita é muito muito antiga. Vem de quando os romanos se encontravam aqui na Península Ibérica e tinham uma deusa que era a dos recém-nascidos, a Lucina, e tinha um quarto crescente na cabeça e trazia na mão uma bandeja de doces», transmite, adicionando que também foram denominados de bolos de açúcar «porque, normalmente, diz-se às pessoas que têm de comer muita côdea quando têm de crescer. E o mel é muito nutritivo. Portanto, os mais pequenos tinham os nutrientes essenciais».
‘Estamos a crescer devagarinho, mas bem alicerçados’
«No Natal, o que fazemos é: o bolo-rei, as filhoses da minha mãe, os sonhos de abóbora dela… No fundo, mantemos todas as tradições. E gostamos. Como em todo o país, no início do séc. XX, houve um empobrecimento generalizado do povo português. E as coisas mais caras deixam de ser usadas como gemas, amêndoas… A minha avó fazia os parrameiros com água para vender, mas na quinta onde ela trabalhou fazia com ovos porque tinham muitas aves de capoeira», diz, analisando que, em épocas de maior aperto financeiro ou até mesmo de crise profunda, os receituários sofrem alterações para que sejam adaptados.
«Mas não é empobrecedor: é enriquecedor, mostra não só uma outra realidade económica como dá alternativas», reflete um dos filhos do chefe Silva, personalidade que apenas aos 18 anos se mudou para Lisboa e trabalhou no atual Turim Suisso Atlântico Hotel e, depois, no Hotel do Império. Volvidos seis anos, viajou até Lourenço Marques – agora Maputo – onde desempenhou funções enquanto chefe de cozinha do Hotel Girassol, do Hotel Xai-Xai e do restaurante do aeroporto local.
Quando regressou a Portugal, passou pelo Hotel Avenida Palace e lecionou na Obra das Mães e no Instituto Culinária Margarina Vaqueiro. Quando se formou na Escola de Hotelaria de Lisboa com distinção, ascendeu a chefe do Grill do Hotel Altis e, mais tarde, a diretor de Produção da Eurest Portugal. Foi subindo de patamar em patamar até ter inaugurado o restaurante Super Chefe, em Lisboa, atividade que conjugou com o cargo de diretor técnico da revista Tele-Culinária.
«Aceitamos encomendas pelo Facebook, mas as pessoas fazem questão de vir aqui porque recebem as recomendações. Estamos a crescer devagarinho, mas bem alicerçados porque não nos interessa industrializar a produção. Fazemos tudo com as técnicas originais», garante, explicando que os clientes têm reações incríveis e, inclusivamente, há quem se agache e diga frases como ‘Agora arrumou comigo!’.
«Aqui há uns dias, uma senhora passou por mim, provou uma queijada e disse ‘não fazia a mínima ideia que aquilo que vendiam na bicicleta era tão bom’ porque há o estigma da venda ambulante», menciona. «Devagarinho, vamos reintroduzindo o conceito porque o receituário e tudo aquilo que está à volta dele é importante. Espero que haja em todo o país iniciativas deste género porque é fundamental diferenciarmo-nos pela grande qualidade. E os portugueses, desde sempre, souberam comer», voltando a vincar que entende o eventual desinteresse dos portugueses por aquilo que é nacional e antigo porque «há épocas que deitam as pessoas abaixo, como a pandemia de covid-19 que vivemos desde o ano passado, e as coisas vão-se perdendo».
«Mas é para reavivar memorias e História que aqui estamos. Vamos continuar a vender na nossa bicicleta e temos um projeto que queremos apresentar à Câmara Municipal que tem a ver com a doçaria da região de Mafra», descortina o homem que considera que o seu amor pela cozinha portuguesa jamais cessará e não desistirá desta, seguindo as pisadas do pai. «É ficarmos à espera para ver se é bem recebido e se o podemos concretizar», conclui esperançoso.