Um suave milagre

E então o filhinho, num murmúrio mais débil que o roçar de uma asa, pediu à mãe que lhe trouxesse esse Rabi que amava as criancinhas, ainda mais as mais pobres, e sarava os males, ainda os mais antigos. 

Foi-nos lido no nosso primeiro ano do liceu, como nunca mais ouvi ninguém ler assim.  A mais marcante, admirável, exigente, culta  professora que tive: Maria Helena Rosa, que um dia por semana  nos lia textos inesquecíveis.
Imagino que este foi expulso da escola há várias gerações.  E hoje pouca gente o conhece,  um dos mais belos e acessíveis  da nossa literatura. Podem lê-lo na net. Leiam-no hoje. Três linhas e o milagre da escrita de Eça  transporta-nos para o tempo de Jesus.  

É a prece mais tocante que rezei, escrita por um agnóstico. Deixo-vos com o final. 

Um Santo Natal! Feliz Ano Novo. Com um milagre.

ENTRE ENGANIM e Cesárea, num casebre desgarrado, sumido na prega dum cerro, vivia a esse tempo uma viúva, mais desgraçada mulher que todas as mulheres de Israel. O seu filhinho único, todo aleijado, passara do magro peito a que ela o criara para os farrapos da enxerga apodrecida, onde jazera, sete anos passados, mirrando e gemendo. (…) . Tão longe do povoado, nunca esmola de pão ou mel entrava o portal. E só ervas apanhadas nas fendas das rochas, cozidas sem sal, nutriam aquelas criaturas de Deus na Terra Escolhida, onde até às aves maléficas sobrava o sustento!
Um dia um mendigo entrou no casebre, repartiu o seu farnel com a mãe amargurada, e um momento sentado na pedra da lareira, coçando as feridas das pernas, contou dessa grande esperança dos tristes, esse Rabi que aparecera na Galileia, e de um pão no mesmo cesto fazia sete, e amava todas as criancinhas, e enxugava todos os prantos, e prometia aos pobres um grande e luminoso Reino, de abundância maior que a Corte de Salomão. 

A mulher escutava, com olhos famintos. E esse doce Rabi, esperança dos tristes, onde se encontrava? O mendigo suspirou. Ah, esse doce Rabi! Quantos o desejavam, que se desesperançavam! A sua fama andava por sobre toda a Judeia, como o sol que até por qualquer velho muro se estende e se goza; mas para enxergar a claridade do seu rosto, só aqueles ditosos que o seu desejo escolhia. 

Obed, tão rico, mandara os seus servos por toda a Galileia para que procurassem Jesus, o chamassem com promessas a Enganim; Sétimo, tão soberano, destacara os seus soldados até à costa do mar para que buscassem Jesus e o conduzissem, por seu mando, a Cesárea. 

Errando, esmolando por tantas estradas, ele topara os servos de Obed, depois os legionários de Sétimo. E todos voltavam, como derrotados, com as sandálias rotas, sem ter descoberto em que mata ou cidade, em que toca ou palácio se escondia Jesus.

A tarde caía. O mendigo apanhou o seu bordão, desceu pelo duro trilho, entre a urze e a rocha. A mãe retomou o seu canto, mais vergada, mais abandonada. E então o filhinho, num murmúrio mais débil que o roçar de uma asa, pediu à mãe que lhe trouxesse esse Rabi que amava as criancinhas, ainda mais as mais pobres, e sarava os males, ainda os mais antigos. 

A mãe apertou a cabeça esguedelhada: ‘Oh filho! E como queres que te deixe e me meta aos caminhos, à procura do Rabi da Galileia? Obed é rico, e tem servos, e debalde buscaram Jesus, por areais e colinas, desde Chorazim até ao país de Moab. Sétimo é forte, e tem soldados, e debalde correram por Jesus, desde o Hebron até ao mar! Como queres que te deixe? Jesus anda por muito longe e a nossa dor mora connosco, dentro destas paredes, e dentro delas nos prende. E mesmo que o encontrasse, como convenceria eu o Rabi tão desejado, por quem ricos e fortes suspiram, a que descesse através das cidades até este ermo, para sarar um entrevadinho tão pobre, sobre enxerga tão rota?’.
A criança, com duas longas lágrimas na face magrinha, murmurou: ‘Oh mãe! Jesus ama todos os pequeninos. E eu ainda tão pequeno, e com um mal tão pesado, e que tanto queria sarar!’

E a mãe, em soluços: ‘Oh meu filho, como te posso deixar? Longas são as estradas da Galileia, e curta a piedade dos homens. Tão rôta, tão trôpega, tão triste, até os cães me ladrariam da porta dos casais. Ninguém atenderia o meu recado, e me apontaria a morada do doce Rabi. Oh filho! Talvez Jesus morresse… Nem mesmo os ricos e os fortes o encontram. O Céu o trouxe, o Céu o levou. E com ele para sempre morreu a esperança dos tristes.’
De entre os negros trapos, erguendo as suas pobres mãozinhas que tremiam, a criança murmurou: «Mãe, eu queria ver Jesus…»

E logo, abrindo devagar a porta e sorrindo, Jesus disse à criança: «Aqui estou’».